O contrato entre particulares não exclui a necessidade do contraditório e da ampla defesa. Além disso, nos acordos de adesão, não pode ser válida cláusula com renúncia a algum direito em detrimento da parte hipossuficiente da relação.
Com essas considerações, a 3ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça da Bahia deu provimento parcial ao recurso inominado interposto por um motorista de aplicativo e condenou a Uber a indenizá-lo em R$ 10 mil por dano moral. A plataforma o descredenciou após receber denúncia de assédio a uma passageira, mas o crime não ficou comprovado.
A decisão do colegiado foi unânime e também condenou a Uber a restabelecer a parceria com o motorista, permitindo que ele volte a utilizar a plataforma, nos termos pactuados, sob pena de multa diária no valor de R$ 500, limitada a R$ 10 mil.
“Os direitos e garantias individuais são oponíveis também nas relações entre particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais), e o princípio da autonomia privada não está imune aos princípios fundamentais da ampla defesa e do contraditório, como já decidido, e não possui caráter absoluto, sob pena de violação dos deveres da boa-fé objetiva e demais direitos constitucionais”, justificou a juíza Ivana Carvalho Silva Fernandes, relatora do recurso.
Inicialmente, a julgadora observou que a relação entre o autor e a Uber não é de consumo. Desse modo, não sendo aplicável ao caso as regras do Código de Defesa do Consumidor, incide sobre ele o regime jurídico comum tratado pelo Código Civil, cabendo o ônus da prova à plataforma, conforme o artigo 373, incisos I e II, do Código de Processo Civil.
Segundo a plataforma, a irmã de uma usuária acusou o motorista de se masturbar durante uma corrida, motivando a passageira a deixar R$ 30 no banco do passageiro e a desembarcar do veículo antes de chegar ao destino solicitado. Com base na suposta conduta inadequada do seu parceiro, a Uber o bloqueou.
Ao tomar conhecimento da denúncia, o autor registrou boletim de ocorrência para “resguardar a sua honra”, conforme alegou, enquanto a vítima do suposto assédio e a plataforma sequer comunicaram o caso à polícia.
A relatora reconheceu o direito de a empresa excluir o motorista na hipótese de violação às suas regras. No entanto, ressalvou que os direitos constitucionais ao contraditório e à ampla defesa do acusado não foram garantidos, havendo “abuso de direito” na rescisão unilateral, e, consequentemente, ato ilícito a ser reparado.
Ivana Fernandes citou o artigo 187 do CC, conforme o qual “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
A julgadora assinalou que, além de não comprovar a suposta conduta inapropriada do parceiro, a ré deixou de levar ao conhecimento das autoridades policiais fato tipificado como crime. “Essa desídia estaria coadunando com a conduta dos usuários em caso de denúncia falsa, afetando a honra de seus parceiros, ou deixando autores de condutas criminosas sem a devida punição.”
Histórico favorável
Enquanto a plataforma não juntou aos autos qualquer documento relacionado ao suposto assédio, o autor demonstrou ter feito mais de quatro mil viagens durante quatro anos de parceria com a Uber. Nesse período, ele recebeu diversos elogios como “condutor prestativo e educado” e nunca foi acusado de qualquer tipo de importunação a passageiras.
“Mostra-se presumível a quebra da tranquilidade do autor em razão do afastamento abrupto, sem qualquer possibilidade de diálogo, sendo inegáveis as angústias, transtornos e incômodos sofridos, passíveis de compensação pecuniária. Restou caracterizado o dano moral suportado pela parte autora em razão da conduta ilícita/abusiva da requerida”, concluiu a relatora.
Conforme o acórdão, a indenização por dano moral foi fixada em R$ 10 mil por ser esse valor “justo e razoável”. O pedido de lucros cessantes foi negado porque o autor não juntou documentos necessários à comprovação de sua média mensal de ganhos, não podendo ser arbitrada uma importância de modo aleatório.
A decisão do colegiado reformou a sentença da juíza Jaciara Borges Ramos, da 1ª Vara do Sistema de Juizados Especiais de Causas Comuns de Salvador. Ela julgou a ação improcedente com o fundamento de que a Uber justificou o desligamento do autor com a inobservância de regras da plataforma.
Ainda conforme o juízo originário, mesmo que não houvesse tal motivação, a ré poderia, a qualquer tempo, rescindir a parceria com o motorista. “O rompimento imotivado, aliás, encontra previsão expressa no contrato, devendo, para que seja regular, somente preencher o requisito consistente no envio de uma notificação sete dias antes do bloqueio definitivo.”
Sobre o desligamento imotivado, referindo-se aos artigos 423, 424 e 421 do CC, a julgadora da 3ª Turma Recursal salientou que, nos contratos de adesão, eventuais cláusulas ambíguas e contraditórias devem ser interpretadas em favor do aderente. Além disso, serão nulas aquelas que estipulem a renúncia antecipada a um direito. Por fim, frisou que a liberdade contratual é restrita aos limites da função social do contrato.
Processo 0127133-75.2021.8.05.0001
Com informações do Conjur