Aprovado pelo Congresso Nacional em 2019, o pacote anticrime trouxe inovações que denominou de “aperfeiçoamento” da lei penal e processual penal em vigência.
A Lei 13.964/19, já promulgada, ainda depende de firmação no contexto legal brasileiro. A lei que institui o juiz das garantias, tem seu mecanismo de atuação suspenso por decisão do Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, sem data para o julgamento, com plena eficácia da liminar que determinou a suspensão do mecanismo do juiz das garantias ao fundamento de que houve violação de princípios constitucionais.
Ainda hoje, a nova lei é alvo de interpretações que imergem a necessidade de amadurecimento jurídico. O novo diploma legal trouxe modificações ao crime de estelionato e inseriu no Art. 171, § 5°, a seguinte alteração: “Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; Criança ou adolescente; Pessoa com deficiência mental; ou Maior de 70 (setenta)anos de idade ou incapaz.
A discussão levada ao STF (2ª. Turma) e aos Ministros, centra-se, especificamente, na nova natureza da ação penal do crime de estelionato. Hoje, para que o Estado promova a percecutio criminis por meio de ação penal sob a titularidade do Ministério Público, depende de manifestação de vontade da vítima, denominado por lei de representação.
Outrora, quando o Ministério Público formava o entendimento de que alguém obteve para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo a vítima em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, promovia, de pronto, a denúncia, por meio de uma petição inicial inauguradora da persecução penal em juízo.
Essa iniciativa que se podia afirmar como privativa do Ministério Público, agora depende do assentimento da vítima, não devendo o parquet despertar a jurisdição sem que o ofendido o autorize, haja vista a nova sistemática imposta pela lei 13.964/2019.
O que se discute atualmente pelo Supremo Tribunal Federal é a questão sobre a possibilidade da lei anticrime, especificamente em face da modificação operada no art. 171 e seu novo § 5º, o não retroagir para alcançar processos instaurados anteriormente à vigência da nova lei e nos quais o Ministério Público não precisaria cumprir a condição então exigida.
A discussão jurídica veio ao Supremo Tribunal Federal, por meio do Habeas Corpus nº 180421, levado a julgamento em 08 de junho de 2021, mas que foi suspenso por pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, presidente da 2ª. Turma e que deverá ser retomado na próxima sessão.
O caso concreto envolve um estelionato atribuído ao dono de uma revendedora de automóveis, cuja conduta teria consistido na venda para outra pessoa de um carro que fora deixado em sua loja por alguém em regime de consignação. (Nesse caso, o carro teria sido dado como garantia de empréstimo).
A ação penal, encontra-se em curso, e se invoca o benefício descrito no Art.107 do CP, Inciso IV, com pedido de extinção de punibilidade pela decadência do direito de representação.
Destaca-se que o Código de Processo Penal dispõe em seu artigo 38 que o ofendido ou seu representante legal, decairá do direito de representação, se não o exercer dentro do prazo de 06 (seis) meses, contados do dia em que vier a saber quem é o autor do crime.
A modificação, no entanto, ocorreu no Código Penal e não no Código de Processo Penal, logo, cuida-se de modificação de natureza material, com alteração na própria lei substantiva penal.
Nesse aspecto, a relevância da discussão jurídica tem o condão de averiguar uma alteração na norma penal, na qual a vontade do legislador é a de que o Ministério Público, para acionar o Estado-Juiz, não o poderá executar em crimes de estelionato, sem a representação da vítima, exceto nas hipóteses que o próprio legislador exceptuou, ficando de fora da regra quando no crime de estelionato a vítima for a administração pública, criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, maiores de 70 anos e os incapazes.
Daí, não se trata de norma processual pura, sob o pálio do Art. 2º do CPP, e sim de lei penal, que tem o condão de invalidar, se não preenchido o requisito, os atos praticados sob a vigência da lei penal anterior.
A posição do Ministro Relator, Edson Fachin é a de que “a aplicação da norma mais favorável ao réu não pode ser um ato condicionado à regulação legislativa. A seu ver, é o caso de intimar a vítima para que diga se tem interesse no prosseguimento da ação, no prazo de 30 dias”.
Os autos de Habeas Corpus se encontram com vista ao ministro Gilmar Mendes, e, é de bom alvitre relembrar que, em termo de legislação pátria, há precedente que cuidou de matéria semelhante, pois a lei 9099/95, transformou o crime de lesão corporal descrito no artigo 129, caput em delito que dependa de representação da vítima.
No próprio bojo de referida lei, especificamente em seu Art.91, o legislador trouxe a previsão: Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.
Não foge ao bom senso, nas causas penais por crime de estelionato instauradas antes da vigência na lei 13.964/19, ainda em trâmite nas Varas Criminais, se adotar a colmatação jurídica, utilizando-se do retromencionado dispositivo para suprir a lacuna existente na lei 13.964/2019.
Por Aline Alencar