Supremo pode abrir caminho para o fim do ‘enquadro’ motivado pela cor da pele

Supremo pode abrir caminho para o fim do ‘enquadro’ motivado pela cor da pele

No último dia 9, o ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, devolveu para julgamento o Habeas Corpus 208.240, que discute a validade de provas colhidas em abordagem policial motivada pela cor da pele. O retorno do caso à pauta da corte ainda não tem data marcada, mas espera-se que isso ocorra em breve.

A decisão do Supremo no julgamento do HC, que foi impetrado pela Defensoria Pública do estado de São Paulo, pode criar parâmetros mais claros para a abordagem policial e dar base jurisprudencial para o banimento da prática do perfilamento racial.

“Essa é uma das questões mais fundamentais no processo penal brasileiro. É preciso criar critérios objetivos para definir o que é fundada suspeita. Isso vai afastar a subjetividade que resulta em perfilamento racial”, afirmou o advogado Cristiano Avila Maronna, diretor da Plataforma Justa, uma das entidades que atuam como amici curiae no processo.

Maronna sustenta que o perfilamento racial nas abordagens policiais é uma realidade comprovada por inúmeras pesquisas. “As Polícias Militares trabalham com base na ideia de abordagem aleatória, que sabemos que sempre esbarra em critérios raciais. Isso é ilegal. A lei não autoriza esse tipo de abordagem. Ela exige a existência de fundada suspeita. E fundada suspeita não é tirocínio policial.”

Segundo o advogado, disciplinar a atuação das polícias é um papel fundamental do Judiciário na garantia de direitos. “Quem defende direitos tem de estar preparado para sancionar as más práticas das autoridades policiais. Realizar a tarefa de tornar os critérios das abordagens objetivos é, na verdade, aplicar regras próprias de um Estado democrático de Direito”.

O presidente da Comissão da Igualdade Racial da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Irapuã Santana, também acredita que o julgamento é muito importante, ainda que não seja vinculante. “O STF vai fixar um entendimento em torno desse tema e a tendência é que esse posicionamento passe a nortear todos os julgamentos de HCs e processos que versarem sobre isso.”

Perfilamento racial em números
Conforme observou Cristiano Maronna, há vários estudos que indicam a existência de perfilamento racial nas abordagens da PM. Um deles é do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que foi divulgado nesta semana.

O levantamento foi conduzido pelo pesquisador Alexandre dos Santos Cunha e analisou 5,1 mil casos de réus presos por tráfico de drogas julgados por Tribunais de Justiça no primeiro semestre deste ano. A conclusão é que a maioria dos abordados é formada por homens (87%), jovens (72%) e negros (67%).

Outro trabalho que desnuda essa realidade é o da pesquisadora Jéssica da Mata, que se tornou o livro Política do Enquadro. O estudo demonstra o crescimento vertiginoso das abordagens aleatórias da Polícia Militar de São Paulo nos últimos anos. Conforme a pesquisa, homens negros entre 15 e 19 anos aparecem sete vezes mais entre os suspeitos abordados pela PM.

“É um dado objetivo. Essas pesquisas são importantes por esse aspecto. É difícil você chegar à conclusão de que há perfilamento racial sem esse elemento”, afirma Glauco Mazetto, defensor público e assessor criminal infracional da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Ele explica que há uma linha muito tênue entre o que é uma abordagem justa conforme o caso concreto e o que é preconceito. “O que se espera do STF é que crie balizas para diminuir a subjetividade desse tipo de abordagem. Isso é bom também para a polícia, para a PM ter segurança no que ela vai fazer.”

Caso concreto
No caso a ser julgado pelo Supremo no HC 208.240, um homem foi condenado por tráfico de drogas por portar 1,53 grama de cocaína. A abordagem policial ocorreu na cidade de Bauru (SP), em maio de 2020, quando o réu estava parado ao lado de um carro.

No HC, a Defensoria sustentou que a abordagem foi baseada em filtragem racial, ou seja, foi motivada essencialmente pela cor da pele do suspeito, um homem negro. Diante disso, a DPE pediu o arquivamento da ação, em razão da ilicitude da prova baseada em racismo.

“A decisão do STF pode representar mais um passo na diminuição dos absurdos gerados pelas buscas e reconhecimentos pessoais que são frutos do racismo estrutural, que precisamos combater com todas as forças possíveis. A superação do critério da ‘fundada suspeita’ exige uma mudança legislativa e, principalmente, de cultura”, opinou o advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor da PUC-RS Aury Lopes Jr.

A ideia de que a fixação de critérios mais objetivos pelo STF pode mudar a cultura das forças de segurança no Brasil é compartilhada por Glauco Mazetto. “Em um primeiro momento, a decisão é importante para garantir segurança jurídica. Mas, a médio e longo prazos, pode haver até mesmo a diminuição de processos derrubados por abordagem ilegal.”

O defensor lembra que, em 2020, o Superior Tribunal de Justiça tomou uma decisão paradigmática sobre reconhecimento de suspeitos. “Isso virou uma chave que fez com que delegados e policiais militares se preocupassem em atender àquilo que foi decidido. Lógico que é uma mudança demorada, mas percebemos que começa a ocorrer. Talvez daqui há cinco, dez, 15 anos a gente sinta uma mudança significativa.”

Irapuã Santana, por sua vez, afirma que os protocolos para abordagem policial sempre existiram, mas alguns agentes simplesmente os ignoram. Mas ele faz um alerta: não adianta apenas tirar das ruas o policial que aborda suspeitos com base em critérios raciais.

“Uma vez que ocorre uma violação em algum tipo de abordagem, é preciso que toda a cadeia de comando seja responsabilizada, mas não é isso o que acontece. No geral, coloca-se o policial que cometeu a infração em serviços administrativos. Estamos apenas trocando peças. O que vai acontecer com as pessoas que não observarem esse tipo de protocolo? Quando acontece esse tipo de coisa nos Estados Unidos, cai todo mundo. Aqui só se troca o policial e fica por isso mesmo. É mais importante pensar em um sistema de incentivos do que realmente em repensar um protocolo que já existe.”

Também ingressaram como amici curiae na ação as seguintes entidades: Conectas Direitos Humanos; Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas; Instituto de Defesa do Direito de Defesa — Marcio Thomaz Bastos (IDDD); Coalisão Negra por Direitos; Instituto Referência Negra Peregum; Educafro Brasil; Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero; Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro); Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); e Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Todas elas defendem que as provas contra o réu são ilícitas, pois alegam que a abordagem foi apoiada em racismo estrutural.

Além das fronteiras
As entidades também criticam a utilização de protocolos subjetivos e inconscientes para justificar abordagens policiais e lembram que o perfilamento racial tem sido condenado por cortes internacionais.

Por essa razão, a insistente utilização do perfilamento racial em abordagens policiais pode fazer o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme observa o pós-doutor em Direito e advogado criminalista Rodrigo Faucz.

“A Corte IDH já se manifestou apontando haver no Brasil violência policial sistêmica contra as pessoas afrodescendentes. Assim, a continuidade da prática do perfilamento racial, se não enfrentada adequadamente pelo Judiciário brasileiro, pode, sim, ser levada para a análise de cortes internacionais.”

Faucz se baseia em precedentes da Corte IDH. Em 2020, a Argentina foi condenada pelo tribunal por causa de duas prisões decorrentes de abordagens policiais, justificadas apenas por “atitude suspeita”.

Na ocasião, a Corte IDH afirmou que o uso de estereótipos “pressupõe uma presunção de culpa contra qualquer pessoa que se enquadre neles, e não a avaliação caso a caso dos motivos que efetivamente indicam que uma pessoa está ligada ao cometimento de um crime”. Na sentença, o tribunal observou ainda que as detenções com bases discriminatórias são “manifestamente desarrazoadas e, portanto, arbitrárias”.

HC 208.240

Com informações do Conjur

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