STJ exalta “cruzada nacional” para qualificação da investigação criminal

STJ exalta “cruzada nacional” para qualificação da investigação criminal

Em um inquérito, a polícia mostra à vítima a foto do suspeito e depois a convida a fazer o reconhecimento pessoal, numa cena em que a única pessoa presente para ser reconhecida é aquela da foto – e que acaba condenada. No segundo caso, a vítima é chamada à delegacia duas semanas após o roubo para ver se identifica o criminoso numa foto; acha parecido, mas afirma “não ter certeza”, e mesmo assim é instaurada a ação penal.

No terceiro processo, consta que a vítima descreveu as características do suspeito e depois o reconheceu por foto, mas não se esclarece que características seriam essas, nem quais fotografias foram apresentadas, nem como a foto do réu chegou às mãos dos policiais, já que ele era primário. Além de não haver nenhuma outra prova para a condenação, foram desconsideradas as provas de que ele estaria trabalhando no momento do crime.

Em comum, os três casos analisados pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no último dia 7 sintetizam o problema da realização de reconhecimentos de suspeitos sem a observância dos procedimentos previstos pela legislação, em especial o artigo 226 do Código de Processo Penal. Em todos os casos, por falta de respeito à lei, foram anulados os procedimentos de reconhecimento, com pareceres favoráveis do Ministério Público Federal.

A sessão – classificada como “histórica” pelos operadores do direito que atuaram nos julgamentos – foi marcada por posições críticas sobre os procedimentos adotados por instituições do sistema de segurança pública e da Justiça em relação às diligências investigativas, mas também marcou o que foi chamado pelo ministro Rogerio Schietti Cruz de uma “cruzada nacional para a qualificação da investigação criminal”.

“Enquanto as agências estatais não mudarem radicalmente a sua maneira de lidar com o processo criminal, zelando, cada autoridade – seja um policial militar, um policial civil, um promotor de justiça, um juiz, um desembargador ou um ministro –, pelo caso singular, nós continuaremos a ver pessoas sendo condenadas de forma absolutamente divorciada do que preconiza a lei”, afirmou Schietti.

Em 2020, no HC 598.886, a Sexta Turma deu nova interpretação ao artigo 226 do CPP, estabelecendo que os procedimentos previstos no dispositivo não são mera recomendação da lei, mas sim normas de observância obrigatória, sob pena de gerar a nulidade do reconhecimento do suspeito.

No ano passado, o colegiado ampliou a sua posição para afirmar que, mesmo nos casos em que o reconhecimento siga os parâmetros legais, o procedimento, embora válido, não possui força probatória absoluta, de modo que não pode resultar, por si só, na certeza da autoria delitiva (HC 712.781).

O novo marco jurisprudencial do STJ teve entre seus fundamentos o contexto de fragilidade em que são realizados muitos dos processos de reconhecimento, a exemplo da confirmação da autoria, pela vítima, com base em fotos não confrontadas com outras provas, e da possibilidade de indução da vítima a reconhecer determinada pessoa como autora do crime, a depender da forma como a polícia lhe apresenta o suspeito. Apesar de falho, esse reconhecimento é, muitas vezes, corroborado pelo Ministério Público e acolhido pelo Judiciário, levando a uma condenação frágil e não fundamentada em outros elementos probatórios.

Para o ministro Schietti, a lei penal não serve apenas contra os infratores, mas também existe para embasar e limitar as ações daqueles que são legitimados pelo Estado a aplicá-la, em todas as suas fases. Sem respeito às leis, observou, “ocorre a situação que estamos vendo: pessoas são jogadas no calabouço, com provas absolutamente viciadas”.

Na sessão, o ministro citou palavras de Louis Brandeis, ex-juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, segundo o qual “se o governo se torna um infrator da lei, gera desprezo pela lei; convida todo homem a se tornar uma lei para si mesmo; convida à anarquia”.

No contexto brasileiro, Schietti ainda alertou para o fato de que, como ocorreu em dois dos processos julgados pela Sexta Turma, os suspeitos eram pessoas negras, trazendo à tona a questão da discriminação racial também nas diligências policiais, sobretudo em comunidades mais pobres do país.

“Há um componente racial presente em quase todos esses casos”, declarou o magistrado, ressaltando que as maiores vítimas desse tipo de ação do Estado “são pessoas que moram nas periferias, pessoas que não têm, muitas vezes, a quem recorrer”.

Rogerio Schietti deixou claro que esse posicionamento não implica considerar que a vítima mentiu ao apontar o acusado. No entanto, ele chamou atenção para o que a psicologia do testemunho define como “erros honestos” – situações nas quais a vítima faz o reconhecimento com sinceridade, de boa-fé, mas é traída por uma falha de memória.

Na verdade, segundo o magistrado, o que se considera é que a afirmação da vítima pode não corresponder à realidade, pois há o risco das “falsas memórias” e, ainda, a possibilidade de indução pelas falhas no procedimento de reconhecimento.

O ministro também fez uma ressalva sobre a atuação das polícias brasileiras. “Não estamos contra o trabalho da polícia. Pelo contrário: nós queremos que a polícia seja cada vez mais respeitada. E, quando a polícia respeita o cidadão, independentemente de quem seja ele, a legitimidade da atuação da polícia e do Estado se apresenta com muita naturalidade”, afirmou.

Na mesma sessão, a ministra Laurita Vaz destacou a importância da jurisprudência do STJ sobre o reconhecimento pessoal, especialmente como forma de aperfeiçoar a atuação da Justiça no exame das provas.

Para o ministro Sebastião Reis Júnior, a Justiça brasileira, muitas vezes, “tem preferido procurar um culpado, e não o culpado” em cada caso. Com a simplificação de procedimentos em matéria penal, o ministro apontou que o Judiciário e o Ministério Público têm aceitado qualquer informação apresentada pela polícia.

“Estamos revisitando esse e outros temas – busca e apreensão, reconhecimento pessoal, habeas corpus coletivo, requisitos da prisão preventiva – sempre visando garantir direitos individuais em face da atuação do Estado-juiz”, afirmou.

O ministro Antonio Saldanha Palheiro reforçou a necessidade de combate às ilegalidades e injustiças que têm sido cometidas no reconhecimento de pessoas.

Por fim, o desembargador convocado Olindo Menezes alertou que a jurisprudência mais recente do STJ ainda não foi completamente acolhida pelo próprio Judiciário, pelo Ministério Público e pelo segmento policial. Às vezes, apontou o magistrado, confunde-se o entendimento do STJ com um “aceno ao crime” ou uma disposição contrária ao trabalho policial, quando, na verdade, a posição do tribunal traduz um novo momento de respeito às garantias constitucionais.

Fonte: STJ

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