Em situações absolutamente excepcionais, a ausência de relevância social do ato tipificado como estupro de vulnerável pode ser usada para afastar a presunção de sua ocorrência. Nesses casos, é possível a absolvição para evitar uma condenação que cause prejuízo aos valores protegidos.
Com base nesse entendimento, e por maioria de votos, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a absolvição de um homem acusado de estupro de vulnerável. O crime foi cometido quando ele tinha 19 anos, por ter se relacionado com uma menina de 12.
A conduta de ter relação sexual com menor de 14 anos está tipificada no artigo 217-A do Código Penal. Nesse caso, elementos como consentimento da vítima ou sua anterior experiência sexual não bastam para afastar a ocorrência do crime.
O STJ tem tese vinculante sobre o tema, consolidada na Súmula 593 da corte. Ainda assim, de maneira excepcionalíssima, tem livrado acusados em hipóteses específicas, em que não existe proveito social na condenação do réu, por afetar o núcleo familiar constituído com a vítima.
Esse cenário foi identificado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) no caso em debate e mantido pela 6ª Turma do STJ. Relator da matéria, o desembargador convocado Jesuíno Rissato apontou a possibilidade de aplicação de um distinguishing (distinção) em relação à tese vinculante da 3ª Seção.
A técnica da distinção é usada quando o magistrado compara os pressupostos de fato e de direito que levaram à formação de um precedente em relação a um determinado caso concreto que esteja em julgamento. Se não houver identidade entre esses pressupostos, o julgador pode superar o precedente vinculante e decidir a causa como entender de direito.
No caso, da relação entre o homem de 19 e a menina de 12 resultou uma filha, que foi assumida por ele. Ao tempo da instrução, eles viviam juntos, formando um núcleo familiar. A vítima manifestou o desejo de continuar com o réu, ainda que precisasse aguardar o cumprimento da pena.
Para o relator, não há relevância social no fato a ponto de resultar na necessidade de condenação. As instâncias ordinárias não identificaram provas que apontassem para a existência de algum risco para a sociedade. Logo, não houve efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pelo artigo 217-A do Código Penal.
“A eventual condenação de um jovem pelo delito de estupro de vulnerável acarretaria uma sanção severa, a ponto de destruir uma entidade familiar, colocando em grave risco a própria vítima e a filha, que não terá o suporte material e emocional do pai, cujo genitor terá de sofrer a estigmatização pela sociedade, diante da etiqueta de estuprador”, pontuou o magistrado.
Volta ao passado
A posição foi acompanhada pelos ministros Sebastião Reis Júnior, Laurita Vaz e Antonio Saldanha Palheiro. Abriu a divergência o ministro Rogerio Schietti Cruz, por entender que a posição acaba por restabelecer a jurisprudência antiga e prejudicial à vítima.
Até o Judiciário fixar que a relação sexual com menor de 14 anos é presumida como estupro de vulnerável, a análise da vulnerabilidade da vítima era feita de forma subjetiva pelo juiz, já que não era amparada em nenhum dado científico ou documentalmente comprovado.
Assim, julgava-se não a conduta do acusado, mas a da vítima. Decidir se ela era merecedora da proteção da lei dependia de uma série de fatores, entre os quais a existência de consentimento para o ato sexual e o tipo de relacionamento que mantinha com o acusado.
“Efetivamente, abre-se uma perigosa porta de subjetividade judicial, nefasta aos interesses de crianças e adolescentes (em sua maioria meninas) vítimas dessa grave conduta criminosa, com a decisão que absolve sumariamente o denunciado e rejeita a denúncia oferecida pelo titular da ação”, alertou o ministro.
Segundo Schietti, ao absolver o réu, o TJ-MG concluiu que, para a configuração do crime de estupro de vulnerável, é preciso que a vítima seja enganada, iludida ou alvo de violência. Se ela consentir com o namoro, tal consentimento torna a relação sexual irrelevante.
Em seu voto, ele estabeleceu quatro conclusões sobre o tema:
- A vulnerabilidade da vítima por sua idade não é sujeita a avaliação judicial e não pode ser relativizada com argumentos que tornem írrito o comando legal e a proteção que merecem todas as crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos;
- A diferença de sete anos entre a idade do autor do ato e a da vítima não exclui a tipicidade e a antijuridicidade da conduta, por ausência de previsão legal;
- A gravidez da vítima e o nascimento de uma filha dessa relação não diminui a responsabilidade penal; ao contrário, por força de lei, incrementa a reprovabilidade da ação, atraindo mesmo uma causa de aumento de pena;
- A circunstância — favorável — de o réu haver reconhecido a filho havido da relação, bem como a circunstância de ter morado com a vítima, não excluem, de per se, a punibilidade da conduta, ainda que, excepcionalmente, possa levar a tal resultado, desde que comprovado judicialmente e de modo incontroverso que houve a constituição de uma família e que ela se mantém.
REsp 2.015.310
Fonte Conjur