De 1º de janeiro a 22 de julho de 2024, o Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus e recursos em HC 996 vezes apenas para aplicar jurisprudência pacífica em casos envolvendo o redutor de pena conhecido como tráfico privilegiado.
Os dados foram compilados pelo advogado David Metzker e indicam o tamanho da renitência das instâncias ordinárias em obedecer posições firmadas pelo tribunal responsável por uniformizar a interpretação da lei federal.
O redutor de pena do tráfico privilegiado é previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas e se destina ao caso do traficante de primeira viagem, que é primário, de bons antecedentes e que ainda não se encontra inserido na criminalidade.
Sua aplicação reduz a pena mínima, que seria de quatro anos, para até um ano e oito meses — a redução pode ser menor, a depender do caso. Como já mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, ele é fonte de grande embate nos tribunais.
Os dados mostram que, ao todo, o tema do tráfico privilegiado gerou a concessão de ordem em 1.223 casos. Em 996 deles, a aplicação do redutor foi recusada pelos tribunais estaduais com base em três fatores:
— Quantidade de drogas;
— O réu ter contra si outras ações penais ou inquéritos em andamento;
— O réu ter no histórico ato infracional análogo ao tráfico de drogas.
Nenhum desses motivos justifica o afastamento do redutor de pena, tampouco comprova que o réu se dedica a atividades criminosas ou integra organização criminosa, conforme a interpretação do STJ.
Em suma, 81,4% dos HCs e RHCs concedidos em 2024 para aplicação do tráfico privilegiado tratam de temas pacificados na jurisprudência do STJ.
Sempre ele
Os dados mostram que a corte estadual que mais desrespeita os precedentes do STJ é a de São Paulo. Dos 1.223 HCs e RHCs concedidos sobre tráfico privilegiado, 733 vieram do Tribunal de Justiça paulista (59,9%). O segundo colocado nesse ranking é o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com um décimo do número (73).
A renitência é tamanha que gerou mais um embate público com o STJ. Isso ocorreu no HC 913.210, em que o desembargador convocado Jesuíno Rissato advertiu o TJ-SP de que precedentes qualificados e a jurisprudência do STJ estavam sendo descumpridos.
A resposta foi uma nota assinada pelo presidente da Seção Criminal do TJ Paulista, desembargador Camargo Aranha Filho, que criticou a “lógica do tudo ou nada” na formação do sistema de precedentes brasileiro.
O caso concreto trata de um réu que teve o redutor de pena negado porque respondia a outra ação por tráfico e devido à elevada quantidade de drogas que trazia consigo.
O STJ tem tese vinculante, no Tema 1.139, que veda a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do redutor de pena.
A corte tem posição firme no sentido de que a quantidade de drogas apreendida só serve para modular a fração de redução da pena na terceira fase da dosimetria, desde que não tenha sido considerada para aumentar a pena-base.
Ato infracional
O levantamento de Metzker mostra que a questão da quantidade de drogas, isoladamente, foi a que mais gerou concessão de ordem para reduzir a pena do réu: 672 vezes. Já os casos em que o réu tinha ação penal ou inquérito policial em andamento foram 192.
O terceiro motivo, com 54 casos, foi o fato de o réu ter praticado ato infracional análogo ao tráfico de drogas quando era adolescente. Tribunais e juízes consideram um indicativo de que ele se dedica a atividades criminosas.
Nesse ponto, a jurisprudência passou por alterações. Desde 2021, a 3ª Seção do STJ entende que o registro de atos infracionais pode afastar a aplicação do tráfico privilegiado, quando os fatos sejam graves, bem documentados e não afastados no tempo.
Um exemplo citado foi o caso de um réu primário que tinha 71 infrações enquanto menor de idade. Ministros apontam a necessidade de avaliar, caso a caso, para ver se há ou não dedicação a atividades criminosa.
A concessão de ordem em 54 casos indica que as cortes não fizeram essa análise de forma adequada.
51 HCs por dia
Os casos de tráfico privilegiado fazem parte de um universo maior e crescente do uso de Habeas Corpus, que há tempos gera preocupação no STJ.
De janeiro a 22 de julho, o tribunal concedeu a ordem 10.598 vezes — a média diária é de 51,9 concessões, o que indica um crescimento de 19,3% em relação a 2023, quando o STJ concedeu 43,5 HCs e RHCs por dia.
Mais da metade é sobre tráfico de drogas: foram 5.521, que correspondem a 52% do total. Desses, 5.451 (98,7%) foram decididos de maneira monocrática, o que indica que houve aplicação de posições pacificadas.
Já dados do tribunal mostram que, até junho, foram registrados 44.587 Habeas Corpus e 8.402 e recursos em HC. A presidente da corte, ministra Maria Thereza de Assis, mostrou preocupação com os números no encerramento do semestre forense.
Não há perspectiva de melhora imediata. A decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu balizas para diferenciar tráfico e porte de maconha, por exemplo, deve gerar uma nova onda de HCs no STJ. Ministros da casa já se preparam para aplicar a decisão.