De 2016 para cá, os ministros da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça concederam a ordem em 44,6% dos pedidos de Habeas Corpus ajuizados para tratar da aplicação do redutor de pena do artigo 33, parágrafo 4º da Lei de Drogas, conhecido com “tráfico privilegiado”.
Os dados foram apresentados pelo ministro Sebastião Reis Júnior, do STJ, em palestra no I Congresso Sistema Brasileiro de Precedentes, sediado pela corte entre 14 e 16 de junho, e usados para mensurar o tamanho do problema enfrentado atualmente.
Os colegiados de Direito Penal convivem com uma explosão do número de HCs e recursos em HC recebidos, em decorrência da falta de uniformidade jurisprudencial potencializada pela desobediência das instâncias ordinárias quanto às posições firmadas nas Cortes superiores.
Essa não é a única causa. Também são culpadas as defesas, pelo uso abusivo do remédio; o Ministério Público, que insiste em teses já derrotadas; e as próprias Cortes superiores, que por vezes falham em dar à própria jurisprudência a tão desejada estabilidade e previsibilidade.
Chama a atenção, nos dados divulgados, o alto percentual de concessão da ordem nos temas mais comuns (veja a tabela). Nessa listagem, a questão do tráfico privilegiado é sintomática porque parece ser gerar especial resistência por parte dos magistrados brasileiros.
HCs concedidos 2016-2023 | |
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Tema | Porcentagem |
Execução Penal | 33,47% |
Dosimetria da pena | 43,39% |
Regime inicial | 43,47% |
Progressão de regime | 36,74% |
Substituição da pena | 46,47% |
Redutor da lei de drogas | 44,65% |
A norma foi inserida na Lei de Drogas, de 2006, para abarcar a situação do traficante de primeira viagem, que é primário, de bons antecedentes e ainda não se encontra inserido na criminalidade. Assim, ela reduz a pena mínima, que seria de 4 anos, para até 1 ano e 8 meses. O que o legislador amenizou o Judiciário tem feito o possível para agravar.
Exemplo disso é que foi preciso o STF editar uma Súmula Vinculante para dizer que, nos casos em que se reconhece o tráfico privilegiado, a regra é aplicar o regime aberto e substituir a pena privativa de liberdade por restritivas de direito. Muitos tribunais consideravam a conduta hedionda — contra jurisprudência do STF — e impunham o regime fechado.
O problema também é legislativo. Uma das grandes questões enfrentadas envolve saber como modular a aplicação do redutor, que reduz a pena de um sexto a dois terços. Como o legislador não fixou parâmetros, o STJ concluiu que não cabe fazer essa uniformização. Casos semelhantes poderão ter penas diferentes. E lá vem recurso.
Essa complicação se repete em menor grau para diversos outras situações analisadas em HC, que obriga os dez ministros da 3ª Seção a dedicar boa parte do tempo a decidir temas já pacificados, via de regra em monocráticas que vão gerar agravo para julgamento colegiado.
“Talvez hoje o Direito Penal seja onde mais se faz necessário o respeito dos precedentes. A coisa está muito complicada”, afirmou o ministro Sebastião Reis Júnior, no evento. “Acho que uma maior respeitabilidade dos precedentes facilitaria — e muito — a questão.”
Algo não está certo
Segundo o ministro Sebastião, a prova de que alguma coisa está errado reside no fato de 29,5% dos pedidos de Habeas Corpus impetrados contra processos originários do Tribunal de Justiça de São Paulo resultarem em ordem concedida pelo STJ.
A Corte paulista tem manifestado resistência ímpar a adotar a jurisprudência não vinculante — e por vezes, até as que deveriam vincular — em temas penais, em uma espécie de medição de forças que tem gerado críticas e embates, além de reiterados pedidos de conscientização.
“É lícito questionar o precedente e pleitear sua superação, mas desde que apresentados elementos substanciosos e, de certa forma, alguma situação nova que não tenha sido enfrentada. A simples reiteração não tem muita lógica. Há necessidade de compreensão disso”, apontou o ministro.
Ao tratar do tema, a advogada e professora Danyelle Galvão destacou que a observância dos precedentes na seara penal tem importância maior por conta da tutela da liberdade. E propôs uma adesão maior ao sistema disposto pelo Código de Processo Civil para o processo penal.
O trecho que deve orientar essa adesão, em sua análise, é o artigo 927, inciso V, segundo o qual juízes e tribunais observarão a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. Assim, HCs e RHCs julgados pela 3ª Seção ganhariam maior relevância.
Outro ponto importante seria finalmente o STJ admitir o trâmite de embargos de divergência quando o acórdão embargado ou paradigma tiver sido proferido em sede de HC, uma possibilidade discutida, mas vetada pela Corte Especial e recentemente recusada pela própria 3ª Seção.
Em sua fala no evento, o ministro Ribeiro Dantas anunciou que está fazendo um estudo para propor essa mudança por meio de alteração regimental. “Isso, para nós da 3ª Seção, é limitador. Quando um caso chega em recurso especial, ele já foi decidido centenas de vezes por Habeas Corpus. Nem adianta mais uniformizar”, disse.
A ideia é, por meio dos embargos, eliminar as divergências até mesmo para evitar a impetração de tantos HCs sobre o mesmo tema. “Não podemos fazer isso ainda porque a regulamentação foi pensada com a cabeça da 1ª e 2ª Seções”, disse, em relação aos colegiados de Direito Público e Privado, respectivamente.
Para Danyelle Galvão, se Judiciário está fixando teses em HC, é hora de pensar em um sistema de precedentes específico para o processo penal, talvez de lege ferenda [lei futura]. “E, no momento, usarmos os acórdãos dessa grandes e importantes tese como paradigma para interposição de recurso especial ou embargos de divergência”, disse.
Com informações do Conjur