Artigo 226 – Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
II – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la.
Desde 2015 a 1ª Turma do Supremo entende que o inciso não tem aplicação obrigatória (Habeas Corpus 125.026, relatoria da ministra Rosa Weber), ou seja, a semântica fria do termo “se possível” prevalece. A orientação tem embasado as decisões dessa turma que, mesmo quando há fragilidade no conjunto probatório, mantém as prisões por considerar idônea a prova testemunhal colhida a partir de reconhecimento pessoal.
Em 2020, todavia, houve uma mudança de paradigmas em torno do tema. No HC 598.886, o ministro Rogerio Schietti tentou estabelecer novos parâmetros e assentou entendimento no sentido de que os incisos do artigo 226 são obrigatórios. Em uma decisão multidisciplinar, em que aborda questões da “Psicologia moderna” para argumentar sobre as possibilidades do erro humano a partir da memória, ele afirmou:
“O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de ‘mera recomendação’ do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação.”
A decisão teve importante reflexo jurisprudencial. De outubro de 2020, quando foi proferida sentença, até dezembro de 2022, o STJ registrou 28 acórdãos das duas turmas criminais e 61 decisões monocráticas que absolveram réus ou revogaram prisões preventivas por conta dos vícios provocados pelo reconhecimento pessoal feito em desacordo com o que diz o CPP e, claro, com o entendimento proferido por Schietti. Os números foram levantados pelo próprio gabinete do ministro.
A cizânia escalou ao Supremo. A 2ª Turma divergiu da outra parte do colegiado e, a partir de um voto de Gilmar Mendes (HC 206.846), absolveu um réu alegando inobservância das exigências do reconhecimento pessoal pelo CPP. Para Gilmar, o inciso 6 do CPP “não é mera recomendação, mas regime necessário à confiabilidade da informação dependente da memória, como o reconhecimento”.
Criminalistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico são unânimes em apontar que essa rusga jurisprudencial afeta de forma desproporcional as pessoas pretas e pobres, que constituem maioria da massa carcerária e encontram mais uma vulnerabilidade no processo penal, que deveria protegê-las dos impropérios acusatórios.
Segundo os especialistas, a divergência também evidencia o excesso de crédito dado à prova testemunhal, invariavelmente sujeita ao erro humano, e a inobservância às jurisprudências consolidadas.
“O Judiciário não obedece seus próprios precedentes, não tem uma tese clara, uma teoria clara, sobre o que é precedente, e isso faz com que as decisões se alterem de um caso para o outro. Além disso, o outro problema, nesse caso específico, é que o Judiciário faz leis, está legislando. Esse é um problema central: o que é um precedente e por que que o Judiciário pode criar leis ou modificar as leis fora do controle de constitucionalidade.”, diz o professor e criminalista Lenio Streck, colunista da ConJur.
Em recente artigo sobre o tema, Streck questionou: “Se o nosso sistema está ancorado (ainda) no civil law, não se pode admitir que o judiciário aplique o direito desaplicando-o, porque a observância da legalidade pelo Poder Judiciário traduz-se em segurança jurídica, já que está no ordenamento jurídico (na legalidade) a previsão de todos os direitos e deveres inerentes ao Estado e aos cidadãos.”
Problema estrutural
A zona cinzenta em que se encontra o artigo 226, ao menos do ponto de vista jurisprudencial, acaba trazendo à superfície outros problemas atrelados ao Direito Penal no país, a começar pelo próprio trabalho da polícia que, em muitos casos, não consegue ou não quer reunir conjunto probatório fidedigno para imputar crime a determinado indivíduo.
O debate também respinga nas instâncias inferiores, que não observam os julgados das cortes superiores e alimentam certa pretensão punitivista.
“[Essa discussão] passa por uma parcela do Judiciário, por uma readequação da valoração daquilo que é prova. As decisões do STJ foram essenciais para retomar o rumo do que se tem como adequado diante do que a Constituição preconiza. A divergência nesse caso contribui para que as antinormatividades ocorram. É permitir que pessoas sejam reconhecidas de maneira indevida e sejam condenadas de maneria indevida”, diz Glauco Mazetto, defensor público e assessor criminal da Defensoria Pública de São Paulo.
O artigo do CPP, de fato, tem gerado distorções que ganharam ampla repercussão e minaram a credibilidade de parte do Judiciário. Em um caso proeminente (HC 686.317), um homem foi preso por furto porque estava com uma camisa do Barcelona do jogador Lionel Messi. Isso porque, segundo os autos, o comerciante roubado viu na câmera que o suposto ladrão estava vestido da mesma forma.
O homem afirmou que encontrou a camisa na rua e a vestiu. Por isso — e pelo seu “porte físico” — acabou condenado. Depois, foi absolvido e solto pelo STJ.
No Rio de Janeiro, a Defensoria Pública do estado teve de entrar com um pedido na Vara Criminal de Petrópolis para que a 57ª Delegacia de Polícia retirasse a foto de um homem negro do “cadastro de suspeitos”. Ele foi apontado nove vezes distintas como autor de crime — e em todas absolvido. O homem sequer havia dado autorização para que sua imagem constasse no álbum.
Em outro caso (REsp 1.914.998) a vítima de assalto afirmou, diante de uma fotografia, que o homem apresentado era “70% semelhante” ao suposto ladrão. O homem, absolvido em primeiro grau e condenado no Tribunal de Justiça de São Paulo, acabou absolvido novamente neste caso, que teve ampla repercussão não só pela questão do reconhecimento, mas pelo fato de que consolidou a jurisprudência estipulada por Schietti nas turmas criminais do STJ.
“Foram diversos os estudos feitos, inclusive pela organização norte-americana Innocence Project, divulgando os erros judiciais baseados em reconhecimentos falhos, que certamente contribuíram para a mudança de entendimento que hoje se consolidou no STJ”, afirma a defensora pública Isabela Veloso Monreal, que atuou no caso.
Para ela, a jurisprudência do STJ trouxe esperança de que “cessem as inúmeras injustiças que se perpetuaram durante tantos anos”.
“Embora não se veja ainda essa consolidação no STF, o que, por certo, causa insegurança jurídica, acredito que a uniformização das decisões do STJ, muito firmes no sentido de não mais aceitarem qualquer irregularidade no procedimento de identificação do verdadeiro autor do crime, já estão contribuindo e a expectativa é a de que haja uma pacificação sobre esse tema de extrema relevância para que cessem tantas injustiças e falhas que acarretam condenações de inocentes.”
Zanin como peça-chave
Com a formação de entendimento uníssono das turmas (5ª e 6ª) do STJ sobre o tema, seguindo argumentação do ministro Schietti, a discussão sobre interpretação do artigo 226 ganha mais força nas turmas do Supremo — e a indicação do ministro Cristiano Zanin, que toma posse nesta semana e vai substituir Ricardo Lewandowski, pode influenciar o rumo do debate.
“Quando se pega o voto do ministro Gilmar Mendes [que defende a obrigatoriedade dos dispositivos do artigo 226], tendo como um dos votos vencidos o ministro Lewandowski, é importante destacar que teremos o ingresso de um novo ministro na sua vaga, o ministro Zanin, e ficaremos na expectativa de como ele vai apreciar essa questão do reconhecimento, seja ele pessoal ou fotográfico”, avalia o advogado criminal e professor Yuri Félix.
Para o criminalista, a pacificação do tema é importante para arrefecer a vulnerabilidade da “clientela preferencial” do Judiciário. Os dados mais recentes do Anuário Brasileiro se Segurança Pública mostram que, das mais de 830 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil, 68,2% são negras e 95% homens.
“Com essa divergência, aumenta a vulnerabilidade de determinada classe, de determinada cor, determinado CEP, que há é algo que ocorre no dia a dia do sistema de Justiça criminal. É preciso debater de forma muito séria uma reforma do CPP, pois o Brasil é o único país da América Latina que, após a Constituição, não fez uma reforma vigorosa no seu código. E as distorções ocorrem por conta dessa ausência de reforma à luz da Constituição.”
HC 227.629
HC 206.846
REsp 1.914.998
Com informações do Conjur