O rito que o Tribunal Superior Eleitoral estabeleceu e adotou para tutelar a inclusão de novos documentos após o prazo para ajuizamento das ações de investigação judicial eleitoral (Aijes) sob sua competência criou um ponto cego processual para as defesas dos investigados.
A decisão tomada por ele, por ser interlocutória, é irrecorrível. É o que indicam o artigo 48 da Resolução 23.608/2019 e o artigo 19 da Resolução 23.478/2016, que o TSE editou para regulamentar procedimentos especiais como o da Aije e estabelecer diretrizes para a aplicação do Código de Processo Civil de 2015 no âmbito da Justiça Eleitoral, respectivamente.
Se o relator da matéria decidir levar esse pronunciamento ao referendo do Plenário do tribunal, a questão se tornará também preclusa — no caso, pela regra do artigo 505 do CPC, que impede os juízes de decidir novamente as questões já decididas relativas à mesma lide.
Isso tudo sem que a parte contrária possa, efetivamente, recorrer.
‘Minuta do golpe’
Foi o que aconteceu com a inclusão da chamada “minuta do golpe” na Aije em que Jair Bolsonaro foi condenado à pena de inelegibilidade por abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação na reunião que fez com embaixadores estrangeiros, em julho de 2022.
A ação foi ajuizada pelo PDT em agosto do ano passado. Em janeiro deste ano, com a demanda já estável, o partido pediu ao TSE para incluir na ação a minuta encontrada na casa do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Anderson Torres, em decorrência das investigações sobre os atos golpistas de 8 de janeiro em Brasília.
Para o PDT, a minuta tinha relação com a causa de pedir da ação, pois reforçava a intenção que levou Bolsonaro a cometer o abuso de poder político: desacreditar a Justiça Eleitoral e o processo de votação brasileiro. O relator aceitou a solicitação e, após um pedido de reconsideração feito pela defesa de Bolsonaro, decidiu levar o caso a referendo do Plenário.
Em fevereiro, por unanimidade de votos, o TSE referendou a decisão, fixando critérios para a inclusão desses novos documentos em todas as Aijes das eleições presidenciais de 2022 — só Bolsonaro responde por mais 15 delas.
Apesar de, em sua decisão interlocutória, o relator ter previsto manifestação das defesas por causa do referendo, a sustentação oral foi negada pelo presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, na data do julgamento, por falta de previsão regimental.
Sem recurso e sem manifestação, a defesa apresentou sua oposição à juntada da “minuta do golpe” nas alegações finais da ação. Por maioria de votos, o TSE decidiu não conhecer da preliminar por considerar o tema precluso.
Pedidos de reconsideração
Esse rito do TSE, de fato, não surpreendeu as partes da Aije, pois foi adotado desde o princípio pelo ministro Benedito Gonçalves: resolver antecipadamente preliminares que poderiam levar à extinção do processosem resolução de mérito e questões prejudiciais que tinham impacto na definição do curso da instrução.
Como não caberia recurso contra essas decisões interlocutórias, e para prestigiar ao máximo o contraditório e o dever de fundamentação, o corregedor-geral da Justiça Eleitoral recebeu as tentativas de recurso da defesa de Bolsonaro como pedidos de reconsideração, afastando-os monocraticamente.
Quando o tema dos documentos novos chegou ao julgamento do mérito da ação, o relator observou que “os investigados fizeram bom e oportuno uso dessa dinâmica, que permitiu, inclusive, o exame imediato de pedido de reconsideração pela corte”. Assim, ele disse que, “se já houve decisão colegiada a respeito de uma questão processual, opera-se a preclusão pro judicato“.
Preclusão do quê?
Abriu a divergência o ministro Raul Araújo, por considerar que o elemento que caracteriza a preclusão é a perda da possibilidade de praticar um ato processual. Se não há ato processual a ser praticado, já que as decisões interlocutórias são irrecorríveis, não há como decretar a preclusão.
A Resolução 23.608/2019, no mesmo artigo 48, traz a solução para esse problema ao prever que as questões que são alvos de decisões interlocutórias deverão ser novamente analisadas por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes em suas alegações finais.
Para o ministro Araújo, o fato de o relator ter levado a questão a Plenário também não causa preclusão, pois as normas do TSE definem as alegações finais como o momento apropriado para opor teses diferentes sobre esses temas. Negar esse direito é violar o devido processo legal e ao contraditório, segundo ele.
No voto do ministro, essa posição fez toda a diferença. Foi o que permitiu reanalisar a inclusão da “minuta do golpe” na ação. Na primeira oportunidade, ele concordou por entender que o relator poderia analisar a pertinência do documento com o resto do acervo probatório.
Já no julgamento da ação, o magistrado entendeu que não há qualquer elemento informativo capaz de sustentar, para além de ilações, a existência de relação entre a reunião e a minuta, bem como de outros documentos. Assim, restringiu o campo de análise dos atos praticados por Bolsonaro.
Isso fez o episódio perder um dos requisitos para caracterizar o abuso do poder político: a gravidade acentuada. A conclusão final de Araújo, que foi vencida, foi de que os atos do ex-presidente não tiveram força para desequilibrar a igualdade entre candidatos e o livre exercício do voto.
Impacto reduzido?
O voto do ministro Floriano de Azevedo Marques, apesar de acompanhar o relator nas preliminares, analisou o tema da ampliação objetiva da demanda e afastou as alegações da defesa porque, conforme o artigo 23 da LC 64/1990, o tribunal deve formar sua convicção inclusive por fatos que não foram indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.
Ainda assim, ele pontuou que os fatos posteriores à estabilização da demanda não são determinantes. “São, ao meu sentir, graves e muito relevantes para as investigações em curso nos inquéritos criminais e nos processos que têm por objeto investigar crimes contra o Estado de Direito e delitos associados. Para a presente análise da Justiça Eleitoral, contudo, os tenho como periféricos, prescindíveis para fundamentar decisão.”
A ministra Cármen Lúcia e os ministros André Ramos Tavares e Alexandre de Moraes, que formaram a maioria, proferiram votos sem dar protagonismo à inclusão dos novos documentos, destacando a reunião em si a partir do precedente firmado pelo TSE no “caso Francischini”.
Já o ministro Kassio Nunes Marques, que divergiu da maioria e votou pela improcedência da ação, afirmou que toda e qualquer preliminar deve poder ser conhecida no momento do julgamento da Aije. “É o que garante aos investigados a ampla defesa e o contraditório, e aos novos membros do tribunal, o exercício de sua função jurisdicional.”
À revista eletrônica Consultor Jurídico, a defesa de Bolsonaro, feita pelo advogado Tarcísio de Vieira Carvalho, apontou que não há qualquer espécie de preclusão — temporal, lógica ou consumativa. E registrou que, diante da relevância do tema durante a instrução do processo, fez pedidos de reconsideração exatamente para evitar prejuízos à ampla defesa e ao devido processo legal.
“Com efeito, a rejeição do pedido de reconsideração foi levada a referendo. E o referendo, na condição de decisão colegiada, é perfeitamente recorrível, razão pela qual consta dos autos um recurso extraordinário ainda pendente de análise”, disse Carvalho. O caso será analisado, portanto, pelo Supremo Tribunal Federal.
“Ainda que assim não fosse, a matéria foi suscitada em sede de alegações finais, para ser tratada no julgamento do mérito. Isto é, a defesa suscitou o que considera uma violação processual em todos os momentos oportunos, o que, a nosso juízo, a torna madura para ser incorporada à discussão constitucional que se seguirá”, defendeu a advogada Marina Morais, que também integra a defesa de Bolsonaro.
Aije 0600814-85.2022.6.00.0000
Com informações do Conjur