A pavimentação do trecho do meio da BR-319, que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM), permanece envolvida em uma complexa controvérsia jurídica que ganha cada vez mais contornos ambientais, sociais e econômicos.
A obra, considerada vital para a conexão entre a Região Norte e o restante do país, se concentra no segmento conhecido como “trecho do meio” — uma área de 405 km, do km 250,7 ao km 656,4, que atravessa uma das regiões mais preservadas da Amazônia.
No centro desse debate está a Licença Prévia nº 672/2022, emitida pelo IBAMA ao DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), que autoriza a reconstrução e o asfaltamento do trecho. No entanto, essa licença foi concedida sob suspeita de desconsiderar pareceres técnicos de órgãos ambientais e de ignorar a consulta obrigatória às comunidades indígenas e tradicionais da região, conforme prevê a legislação.
Decisão Judicial e Paralisia das Obras
O caso chegou ao Judiciário, resultando em uma decisão da Juíza Federal Mara Elisa Andrade, da 7ª Vara da Justiça Federal no Amazonas. Em 24 de julho de 2024, a magistrada deferiu um pedido de tutela de urgência, determinando a suspensão imediata dos efeitos da Licença Prévia n° 672/2022. A decisão paralisou as obras de pavimentação do trecho do meio da rodovia, sob pena de multa pessoal de R$ 500 mil ao agente público responsável, em caso de descumprimento.
O principal fundamento da juíza foi o princípio da prevenção ambiental, que visa evitar danos irreversíveis ao meio ambiente até que todas as medidas de mitigação sejam implementadas. Segundo a decisão, a obra impacta diretamente uma região de extrema relevância ecológica, e a falta de consulta às comunidades afetadas reforça a necessidade de interrupção dos trabalhos.
Defesa da União e Disputa no TRF1
Inconformada com a decisão, a Advocacia-Geral da União (AGU), representando o IBAMA, ingressou com um pedido de suspensão da liminar, argumentando que a paralisação das obras causa grave lesão à ordem pública, uma vez que interfere no exercício legítimo do Poder Executivo. A AGU destacou que o processo de licenciamento ambiental está em fase de Licença Prévia, cujo objetivo é apenas avaliar a viabilidade ambiental do empreendimento, e não necessariamente implementar todas as medidas mitigatórias neste estágio.
A AGU também defendeu que a Juíza Mara Elisa Andrade desconsiderou o Relatório do Grupo de Trabalho, instituído em 2023 pelo Ministério dos Transportes, e ignorou os esforços contínuos do DNIT em reuniões para fornecer informações ao IBAMA e outros órgãos envolvidos no processo de licenciamento.
Todavia, em 22 de agosto de 2024, o Desembargador João Batista Moreira, Presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), manteve a liminar que suspendeu a licença.
O magistrado justificou que, em questões ambientais, o princípio constitucional da prevenção deve prevalecer, e que o avanço das obras sem as devidas salvaguardas pode gerar danos irreparáveis. Ele também ressaltou que a BR-319 é uma obra que já vem sendo discutida há anos, sem que uma solução imediata seja necessária ou possível.
Novos Movimentos Jurídicos e Agravos Pendentes
Não satisfeitos com a decisão do TRF1, a União e o DNIT ingressaram com agravo de instrumento junto ao tribunal, buscando revogar a liminar que paralisou as obras. O recurso foi distribuído ao Desembargador Flávio Jardim, que desde 6 de setembro de 2024 analisa o pedido de revogação da suspensão. O DNIT argumenta que a licença ambiental n° 672/2022 foi concedida de maneira legal e que a paralisação das obras compromete o progresso de um empreendimento fundamental para a integração regional e o desenvolvimento socioeconômico da Amazônia.
O DNIT defende que, apesar das críticas, o processo de licenciamento está sendo conduzido dentro dos limites legais e que já foram implementadas medidas para assegurar a preservação ambiental ao longo da BR-319. A autarquia sustenta que a fase de Licença Prévia não exige a implementação total das medidas mitigatórias, pois sua principal função é verificar a viabilidade ambiental do projeto, e não a execução de todas as ações ambientais desde o início.
Participação da OAB e Posicionamento Ambiental
Nesse contexto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou no processo como amicus curiae, manifestando apoio à obra e ressaltando sua importância estratégica para o Amazonas. O presidente da OAB, Beto Simonetti, afirmou que “a BR-319 é muito mais que uma estrada, é um símbolo de integração e dignidade para o povo do Amazonas.” Ele destacou que a revitalização da rodovia é crucial para garantir o acesso a direitos fundamentais, como saúde, educação e trabalho, especialmente em um contexto de crise climática.
Por outro lado, especialistas em meio ambiente argumentam que a pavimentação da BR-319 pode causar impactos irreversíveis no ecossistema amazônico. Organizações de defesa ambiental ressaltam que a rodovia, além de atravessar uma das áreas mais preservadas da Amazônia, pode facilitar o desmatamento e a grilagem de terras, um fenômeno conhecido como “efeito espinha de peixe”, observado em outras rodovias como a BR-163. Eles defendem que a obra deve ser precedida de um planejamento robusto de governança ambiental e de salvaguardas territoriais, sob pena de o Brasil descumprir suas obrigações ambientais e climáticas, tanto internas quanto internacionais.
Um Debate Sem Fim Próximo à Vista?
O impasse em torno da BR-319 vai muito além de uma disputa técnica sobre o licenciamento ambiental de uma obra de infraestrutura. O debate coloca o Brasil diante de um dilema crucial: priorizar um crescimento econômico que pode comprometer a sustentabilidade ou buscar um equilíbrio entre desenvolvimento e preservação ambiental.
A resposta a essa questão definirá não só o futuro da Amazônia, mas também o papel do país na luta global contra a crise climática e na proteção do maior bioma tropical do mundo.
Enquanto o debate jurídico prossegue sem uma solução definitiva, as obras permanecem suspensas e a pavimentação do “trecho do meio” da BR-319 segue como um dos casos mais emblemáticos da tensão entre desenvolvimento e preservação ambiental no Brasil.