A recente decisão da 14ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que absolveu um homem anteriormente condenado por estupro de vulnerável, não é apenas um ato de revisão judicial — é uma reafirmação do núcleo duro das garantias penais: ninguém deve ser condenado quando subsistirem dúvidas relevantes sobre os elementos essenciais do tipo penal.
No caso em questão, a vítima — enteada do acusado — foi considerada vulnerável apenas com base na idade presumida, inferior a 14 anos. Contudo, durante a instrução, não foi possível estabelecer com precisão se o fato ocorreu antes ou depois da data em que a ofendida completou 14 anos. A denúncia, por sua vez, não apontou qualquer outra forma legal de vulnerabilidade, nem descreveu conduta com violência ou grave ameaça que pudesse justificar a aplicação do artigo 213 do Código Penal.
Diante disso, o TJSP fez o que o Direito Penal manda fazer diante da dúvida: recuar. E mais do que isso, reiterou que o Direito Penal não pode atuar com base em presunções frágeis, especialmente quando se está diante de um tipo penal de natureza objetiva, como o estupro de vulnerável, que exige a comprovação de um marco etário preciso.
O relator, Desembargador Hermann Herschander, foi didático: ao faltar a comprovação segura da idade da vítima e ausente qualquer outra base legal para sustentar a vulnerabilidade, não se pode punir por suposição. Reclassificou-se a conduta para o crime de importunação sexual — infração grave, sim, mas que guarda proporção com a materialidade que se logrou demonstrar nos autos.
Essa decisão nos convida a refletir sobre dois eixos fundamentais do processo penal: o ônus da prova e a função das garantias processuais. Em uma era marcada pela hipertrofia acusatória, a lembrança de que “é melhor absolver um culpado do que condenar um inocente” não é apenas um clichê moral, mas um princípio jurídico estruturante. A dúvida, quando real, não é uma falha do sistema — é um limite ético que protege todos nós do arbítrio.
A repercussão do caso pode gerar reações emocionais compreensíveis, mas é essencial que o debate jurídico permaneça ancorado em fundamentos constitucionais. A proteção à dignidade da vítima é indiscutível — mas também o é o dever do Estado de respeitar o devido processo legal e a presunção de inocência.
Ao reafirmar esses pilares, o TJSP não deslegitima o discurso de proteção às vítimas, tampouco enfraquece o combate à violência sexual. Pelo contrário: mostra que o verdadeiro compromisso com a justiça está em julgar com rigor técnico, prudência e respeito às garantias penais, mesmo diante de narrativas impactantes.
O caso deixa uma lição clara para acusadores e julgadores: a gravidade do delito não pode substituir a prova. A indignação não pode substituir o direito.
Por João de Holanda Farias
O Autor é advogado e Promotor de Justiça Aposentado do MPAM