Em memorial encaminhado aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o procurador-geral da República, Augusto Aras, aponta omissões em acórdão da Corte que tratou da licitude de prova obtida mediante abertura de carta, telegrama ou pacotes. Ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 1.116.949/PR, em agosto de 2020, o colegiado fixou a seguinte tese de repercussão geral: “Sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta, telegrama, pacote ou meio análogo”. A Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentou embargos de declaração indicando que a Corte deixou de fazer importante diferenciação entre envio de correspondência e remessa de encomenda, que são situações diferentes e não têm a mesma extensão da proteção constitucional ao sigilo. O processo foi pautado para julgamento virtual do STF nesta semana, mas como foi destacado pelo ministro Alexandre de Moraes, será encaminhado para o Plenário Físico.
No texto, o procurador-geral reforça que é preciso deixar claros alguns pontos e atribuir-se efeito modificativo ao recurso para permitir a alteração da tese anteriormente firmada e tornar lícita a prova obtida por meio de abertura de encomenda postada nos Correios, quando houver fundados indícios da prática de atividades criminosas.
O PGR alerta para risco decorrente da manutenção do acórdão, pois, por se tratar de decisão vinculante, haverá impacto na atividade de fiscalização e na atuação das autoridades na prevenção de crimes, especialmente do tráfico de entorpecentes. É frequente a apreensão de drogas, além de armas e mercadorias irregulares em pacotes remetidos pelos Correios ou por outras empresas de transporte.
Outro ponto omisso refere-se ao fato de a deliberação silenciar a respeito da consolidada jurisprudência da Suprema Corte no sentido de que a inviolabilidade do sigilo das comunicações não pode servir de escudo para a prática de ilícitos.
O que diz a PGR – No memorial, Augusto Aras alerta para a importância de o STF fazer a distinção entre endereçamento de correspondência e de encomenda, e de reafirmar a impossibilidade de utilização da cláusula de inviolabilidade do sigilo das comunicações como instrumento para a prática de ilícitos.
O próprio STF – ao julgar processo sobre o monopólio do serviço postal pelos Correios (ADPF 462) – reconheceu a constitucionalidade dos trechos da Lei 6.538/1978, na qual são definidos os conceitos de carta, correspondência e encomenda. Na lei, segundo Aras, “verifica-se que o sigilo constitucional é atinente à tutela do ato de comunicação privada, à proteção da transmissão de informações por meio da correspondência, voltado a resguardar a mensagem trocada entre remetente e destinatário, não abrangendo o envio de pacotes ou mercadorias, desprovido que é de qualquer teor comunicativo”.
Portanto, a remessa de encomenda (pacote com mercadoria, produto ou substância) é algo diverso do endereçamento de correspondência para fins de sigilo, uma vez que o artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal, foi expresso em não utilizar o termo encomenda postal ou outro equivalente.
Para Augusto Aras, a tese deve ser ajustada a fim de se estabelecer que encomenda, ainda que remetida via Correios, não constitui correspondência e não é protegida pelo sigilo constitucional atinente às comunicações; existindo suspeita de prática de ilícito penal, pode a encomenda ser averiguada, sem prévia ordem judicial, pelos Correios e pela Administração pública em geral; e é lícita a prova obtida por meio da abertura de encomenda quando houver fundados indícios da prática de ilícitos, devidamente registrados.
Pedidos – Ao final, o PGR requer o provimento dos embargos de declaração para que, superadas as omissões demonstradas e atribuídos efeitos modificativos ao recurso, seja desprovido o recurso extraordinário, adotando-se a tese de repercussão geral no sentido de que é lícita a prova obtida por meio de abertura de encomenda postada nos Correios quando houver fundados indícios da prática de atividades ilícitas.
Entenda o caso – Em 2020, o procurador-geral da República, Augusto Aras, encaminhou manifestação ao Supremo no RE 1.116.949/PR, que discutia a licitude de prova obtida mediante abertura de encomenda postada nos Correios que continha droga sintética. Na ocasião, o PGR disse que a prática de conduta delituosa autoriza a abertura de encomenda e apreensão de material ilícito, sob pena de tornar o envio de encomenda meio apropriado para cometimento de crime e tornar o sistema Correios emissário do delito.
O RE é de autoria de policial militar condenado na primeira instância da Justiça Militar de Curitiba por tráfico de drogas. O réu tentou, durante expediente, enviar droga sintética pelo setor de Protocolo-Geral do Palácio Iguaçu (sede do governo do estado do Paraná), utilizando o serviço de envio de correspondência da Administração. Servidores públicos responsáveis pela triagem, considerando o peso e o suposto conteúdo da embalagem, abriram o pacote e encontraram 36 frascos com líquido transparente. Submetido à perícia, constatou-se que o material era ácido gamahidroxibutírico e cetamina, substâncias entorpecentes sujeitas a controle especial.
No recurso ao STF, o policial sustenta haver afronta à inviolabilidade de correspondência e à proibição de utilização de prova ilícita. Augusto Aras, no entanto, afirma que o envio de encomenda e o de carta são de naturezas distintas para efeito de incidência da inviolabilidade das correspondências. “A cláusula constitucional de inviolabilidade de sigilo de correspondência não incide no presente caso, pois ela não abrange o envio de encomenda”. Com informações do MPF