Nos anos 1980, um bordão publicitário caiu na boca do povo e virou jargão nacional: “Denorex: parece remédio, mas não é.” Bastava algo se assemelhar à verdade — sem sê-la de fato — para que alguém sentenciasse com ironia: “É Denorex: parece, mas não é!”
Essa frase, resgatada em tom bem-humorado, nos ajuda a refletir com a seriedade que exige uma decisão tomada nesta semana pelo Supremo Tribunal Federal. Em julgamento virtual, a Corte formou maioria para excluir da base de cálculo do novo arcabouço fiscal — instituído pela Lei Complementar nº 200/2023 — as chamadas receitas próprias do Judiciário da União, como custas processuais, emolumentos e valores arrecadados por convênios.
A decisão, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, foi recebida com naturalidade nos círculos jurídicos e administrativos: parece tecnicamente correta, parece respeitar a autonomia dos Poderes, parece até razoável. Mas — e aqui está o ponto — parece, mas não é.
Essa liberdade de gastar além do teto fiscal, sob a justificativa da existência de receitas alternativas, rompe com o regime constitucional de subsídios (CF, art. 39, §4º), no qual a remuneração dos membros do Poder Judiciário deve observar limites objetivos, fixados por lei, e vinculados ao subsídio dos ministros do Supremo. Na prática, permite-se a criação de acréscimos remuneratórios indiretos, que escapam ao controle do teto e se manifestam sob formas de auxílios, indenizações e gratificações diversas, desfigurando o modelo de remuneração por subsídio.
Mais do que isso, a medida compromete o princípio da paridade entre ativos e inativos, assegurado no art. 40, §8º da Constituição Federal. Ao permitir que somente os magistrados da ativa tenham acesso a parcelas oriundas de receitas próprias, rompe-se a simetria que deveria existir entre servidores na ativa e aposentados, esvaziando o compromisso solidário que estrutura o regime próprio de previdência.
A paridade não é uma cortesia da Constituição: é um imperativo de justiça intergeracional dentro do serviço público. Ao subverter essa lógica, o Judiciário abandona a isonomia interna e cria um sistema de castas dentro da própria magistratura — onde os da ativa desfrutam de um regime paralelo, mais vantajoso, ao arrepio da legalidade.
O que se vende como respeito à autonomia financeira, na verdade, afronta o art. 37 da Constituição, que exige moralidade, legalidade, impessoalidade e eficiência na administração pública. Os acréscimos salariais travestidos de indenizações ou auxílios não resistem ao teste da transparência nem da justiça fiscal.
Estamos diante de um novo tipo de penduricalho: aquele que não parece vantagem pessoal, mas é. Que parece medida técnica, mas esconde privilégio. Que parece obedecer à Constituição, mas a contorna.
É o típico efeito Denorex institucional: parece legítimo, mas não é. E enquanto o país tenta reconstruir um sistema fiscal sustentável e equânime entre os Poderes, a concessão de exceções silenciosas mina o esforço coletivo e fragiliza a confiança pública nas instituições.
A responsabilidade fiscal não pode ser facultativa. E a Constituição não pode ser interpretada como uma carta de exceções. Porque, no fim, o que hoje parece legal e razoável, amanhã pode se revelar injusto ou desequilibrado.
Por João de Holanda Farias
O Autor é Advogado, egresso do Ministério Público do Amazonas