O caso Daniel Alves reacende reflexões que transcende fronteiras: o risco da espetacularização da justiça penal e seus efeitos colaterais, muitas vezes irreversíveis. A absolvição — que ainda não é definitiva— revelou um ponto de inflexão sobre o modo como a sociedade contemporânea lida com acusações graves, e tem peso da opinião pública, fenômeno não exclusivo da Espanha e que no Brasil tornou-se quase regra.
A absolvição do ex-jogador Daniel Alves pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha, reacende discussões profundas sobre os limites da atuação jurisdicional nos casos de crimes sexuais, os princípios garantistas dos Estados Democráticos de Direito e a possibilidade de responsabilização civil após o trânsito em julgado de uma sentença penal absolutória.
Condenado em primeira instância a quatro anos e seis meses de prisão sob a acusação de estupro ocorrido em uma discoteca em Barcelona, em 2022, Alves viu a sentença ser anulada por decisão colegiada de quatro magistrados, que apontaram inconsistências relevantes no depoimento da suposta vítima e ausência de provas que pudessem sustentar a condenação penal com o grau de certeza exigido.
A absolvição do ex-atleta está fundamentada na máxima do in dubio pro reo, expressão que resume um dos pilares do direito penal moderno: é preferível absolver um culpado do que condenar um inocente. Em se tratando de privação de liberdade — o bem jurídico mais sensível e valioso sob tutela do Estado —, o sistema de justiça criminal deve operar dentro de um padrão rigoroso de exigência probatória.
Não basta a mera verossimilhança ou indícios de culpa. Exige-se a certeza jurídica, sob pena de se atropelar o devido processo legal e a presunção de inocência.
É nesse contexto que a Corte catalã anulou a condenação e declarou a insuficiência dos elementos constantes nos autos para justificar a imposição da pena. Alves, que já se encontrava em liberdade provisória, sai do processo penal com um resultado favorável — mas não sem sequelas. O episódio gerou ampla repercussão na mídia, danos à sua imagem pública, rescisão contratual com o clube mexicano Pumas e prejuízos materiais e emocionais de proporções incalculáveis.
Diante disso, cogita-se agora uma possível ação de reparação de danos materiais e morais contra o ex-clube ou outros entes envolvidos na responsabilização prematura de Alves, inclusive com base em eventual abuso contratual ou rompimento injustificado da relação profissional.
Ainda que essa discussão deva se desenrolar à luz do ordenamento jurídico espanhol, é interessante imaginar como essa situação seria tratada sob a ótica do direito brasileiro.
No Brasil, a absolvição criminal não necessariamente impede a responsabilização civil. Essa possibilidade está prevista nos artigos 66 e 67 do Código de Processo Penal, que delimitam os efeitos civis da sentença penal absolutória. Segundo o art. 66 do CPP, a sentença penal absolutória não impede o ajuizamento de ação civil indenizatória, exceto se reconhecida, de forma categórica, a inexistência do fato.
Bom se obtemperar que determinadas decisões penais não fazem coisa julgada no cível, como o arquivamento do inquérito, a extinção da punibilidade e, especialmente a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.
Isso significa que, no Brasil, uma absolvição por insuficiência de provas não impediria, por si só, a propositura de ação civil — seja pela vítima, seja pelo réu eventualmente prejudicado, conforme o caso.
Contudo, a ação indenizatória precisaria, ela própria, passar pelo crivo de uma análise probatória rigorosa. No plano civil, o ônus da prova é menos exigente, baseando-se na verossimilhança dos fatos e no convencimento do julgador segundo as regras da experiência comum, mas ainda assim requer indícios mínimos da ocorrência do dano e de sua origem.
É importante destacar que o debate público e midiático sobre o caso gerou uma verdadeira condenação paralela, independente dos autos. Trata-se de uma dinâmica perigosa, que tensiona o princípio da presunção de inocência e antecipa julgamentos com base na narrativa, não nos fatos provados. Por isso, casos como esse servem de alerta para os operadores do Direito e para a sociedade em geral sobre os riscos da espetacularização da Justiça penal.
Não se trata, aqui, de negar o protagonismo das vítimas ou minimizar a gravidade dos crimes sexuais, que devem ser apurados com todo o rigor e seriedade. Mas sim de reafirmar que a condenação penal exige mais que convicção moral: exige prova concreta, robusta, livre de dúvidas razoáveis.
Por João de Holanda Farias,
O autor é advogado e Promotor de Justiça Aposentado do MPAM