A manifestação dos aposentados do Judiciário e do Ministério Público acerca da gratificação denominada “acervo processual” e do direito à paridade, traz à tona um debate fundamental sobre a moralidade administrativa e a estrutura remuneratória dessas carreiras.
A argumentação dos aposentados não é contra o pagamento de indenizações, e sim contra o desrespeito à paridade que está sendo violado por meio de ‘reajustes’ travestidos de penduricalhos que ofendem a equidade, a justiça e o respeito à Constituição e deve ser considerado com atenção, pois há um evidente descompasso entre princípios constitucionais e a justificativa para essa verba indenizatória.
O “acervo processual” foi instituído como uma compensação financeira para juízes e promotores de justiça sob o pretexto de que lidam com um volume excessivo de processos ou que demonstram qualidade excepcional em suas decisões.
Contudo, esse fundamento esbarra em falácias que comprometem sua legitimidade e ofendem a moralidade administrativa.
A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Esse princípio consagra a garantia de acesso à Justiça e, implicitamente, define que a prestação jurisdicional deve ser de qualidade, pois o Poder Judiciário não pode se furtar a analisar qualquer demanda que lhe seja apresentada.
Assim, diferenciar magistrados e membros do Ministério Público com base em suposta “qualidade superior” no exercício de suas funções não apenas contraria a lógica constitucional, como também abre margem para distorções e subjetivismos incompatíveis com a impessoalidade e a isonomia exigidas na administração pública.
Além disso, a alegação de que a sobrecarga processual justifica essa gratificação tampouco se sustenta. A distribuição de processos no Judiciário ocorre por meio de critérios técnicos e administrativos, considerando a especialização de varas e a criação de novas unidades jurisdicionais quando há aumento substancial da demanda.
Assim, se há um acúmulo excessivo de processos em determinadas comarcas ou varas, a solução adequada não está na criação de vantagens remuneratórias individuais, mas na reestruturação administrativa e no fortalecimento da divisão judiciária. O próprio ordenamento jurídico já prevê mecanismos de equalização do trabalho entre magistrados e promotores, tornando desnecessária qualquer compensação adicional sob essa justificativa.
Ademais, a concessão dessa gratificação fere diretamente o regime de subsídio, previsto no artigo 39, §4º, da Constituição, que determina a remuneração única para membros do Judiciário e do Ministério Público, vedando acréscimos adicionais. Ao permitir o pagamento do “acervo processual”, cria-se um artifício que, na prática, burla esse regime e concede aumentos disfarçados a determinadas categorias, afrontando princípios como o da legalidade, da moralidade e da igualdade.
A crítica dos aposentados é, portanto, pertinente e coerente com os princípios que regem a administração pública. O “acervo processual” não pode ser utilizado como um subterfúgio para burlar o teto remuneratório e conceder benesses injustificáveis.
Se há necessidade de revisão estrutural na forma como os processos são distribuídos e julgados, que se promovam reformas administrativas, e não gratificações questionáveis que violam a essência do serviço público. O Judiciário e o Ministério Público devem ser os primeiros a zelar pelo cumprimento estrito da Constituição, e isso inclui a responsabilidade na gestão de seus próprios recursos e na estruturação de suas carreiras, com o necessário exemplo exigido dos atores que integram a estrutura da justiça.
Por João de Holanda Farias
O Autor é advogado
Promotor de Justiça aposentado do Ministério Púbico do Amazonas