Bahia – A honra é um direito personalíssimo que não admite dano reflexo ou por ricochete. Com esta fundamentação, a 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais de Salvador confirmou a sentença que negou pedido indenizatório de um policial militar contra o cantor e deputado federal Igor Kannário (União Brasil-BA).
Segundo o autor, ele sofreu dano moral em decorrência de ofensas feitas pelo artista durante show em seu trio elétrico, no Carnaval de 2020.
Uma multidão acompanhava a apresentação de Kannário no circuito do Campo Grande. Em dado momento, o artista parlamentar parou de cantar porque começou uma confusão entre policiais militares e foliões. Do alto do seu trio, ao microfone, ele esbravejou: “Isso é abuso de poder, abuso de autoridade. Eu quero uma vaia para a Polícia Militar da Bahia”. Os protestos se intensificaram com o cantor chamando os policiais de “agressores” e dizendo “venha me bater aqui em cima, seu bunda mole”.
Diversas pessoas filmaram com os seus celulares o episódio. As imagens viralizaram nas redes sociais e também tiveram grande repercussão na mídia. O autor da ação é policial militar na Bahia e atribuiu à causa o valor de R$ 20 mil. Apesar de não ter atuado no evento carnavalesco, ele sustentou em sua petição inicial que a manifestação ofensiva de Igor Kannário contra a PM do estado também o atingiu, razão pela qual faria jus a indenização por danos morais.
A sentença pondera que a Constituição Federal consagra o direito de livre manifestação do pensamento (artigo 5º, IV) e assegura a liberdade de expressão em relação à atividade jornalística, intelectual e de comunicação (artigo 5º, IX). Contudo, para fins de caracterização de dano moral, a Carta Magna não afasta a possibilidade de avaliação das consequências da divulgação do pensamento, que poderá ser considerado ofensivo, ou não, a um dos atributos da personalidade humana.
Na conjugação de tais valores, a juíza Carla Rodrigues de Araújo, da 4ª Vara do Sistema dos Juizados Especiais de Causas Comuns de Salvador, negou o pedido de indenização.
“No caso em comento, é irrefutável que a conduta do réu se mostra ofensiva, contudo, apenas os destinatários diretos da ofensa é que foram alvo e merecem a tutela reparatória, não as pessoas que não estavam presentes ao evento, eis que não são destinatárias diretas das ofensas, como é o caso dos autos”.
Conforme a julgadora, os vídeos mostram que as “críticas fervorosas” do cantor tiveram como alvos apenas os PMs que estavam no entorno do trio elétrico. Esta conclusão pode ser extraída tanto pelo que disse Kannário como pela sua expressão corporal, que engloba apontamento de dedos e direcionamento da cabeça. “Portanto, apesar de haver uma conduta do réu, a responsabilidade civil não se sustenta sem os demais elementos, quais sejam: dano direto e pessoal ao ofendido, como ocorre no caso em comento”.
A tese autoral de dano reflexo ou ricochete também foi rejeitada por Carla Araújo. A juíza destacou na sentença que o próprio autor, em seu depoimento, “sequer mensura as repercussões que as falas do réu impingiram em sua vida privada, em sua esfera íntima”. A solidariedade prestada pela parte autora aos seus pares “demonstra verdadeiro sentimento de unidade dentro da corporação policial que integra”, mas não o suficiente para fazê-la comungar, de modo idêntico, das ofensas dirigidas aos PMs em serviço.
Sobre o pedido de vaia à PM feito pelo cantor, a julgadora entendeu que ele “se traduz no exercício do direito à livre manifestação de pensamento, que não apenas é concedido ao réu, mas se estende a todo e qualquer sujeito de Direito”.
Relatora do recurso do autor, a juíza Maria Auxiliadora Sobral Leite votou que “a sentença hostilizada é incensurável, por isso merece confirmação pelos seus próprios fundamentos”. O acórdão transitou em julgado no último dia 21 de fevereiro.
Processo 0172004-30.2020.8.05.0001
Fonte: Conjur