Restrições ambientais são aplicáveis ao uso da propriedade privada, e isso inclui sua perda diante da criação de uma unidade de conservação. Esse conceito, no entanto, não se aplica aos territórios de povos tradicionais. Nesses casos, a parte central da relação da comunidade com a terra não é o domínio patrimonial, mas, sim, o uso para sobrevivência, por meio da extração dos bens indispensáveis às necessidades básicas, com baixo impacto ambiental.
Assim, a juíza Hallana Duarte Miranda, da Vara Única de Eldorado (SP), invalidou a sobreposição de uma unidade de conservação ao território quilombola Bombas, em Iporanga (SP), no Vale do Ribeira, e condenou o governo de São Paulo a outorgar o título de domínio do local à comunidade.
Para a declaração do título de domínio, o governo paulista e a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), hoje vinculada à Secretaria Estadual da Agricultura e Abastecimento, deverão promover o levantamento fundiário atualizado em até seis meses e iniciar a regularização fundiária nos dez anos seguintes.
O conflito se refere ao Decreto Estadual 32.238/1958, que criou o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar). A decisão anula apenas a parte em que o decreto se sobrepõe ao território quilombola.
Com a sentença, a comunidade quilombola e a Fundação Florestal do governo estadual farão uma cogestão do território.
A multa pelo descumprimento do levantamento fundiário é de R$ 5 mil por cada mês de atraso na conclusão, limitada a R$ 50 mil. Esses valores deverão ser revertidos à comunidade.
Para a regularização fundiária e a outorga do domínio, a multa, também em favor dos quilombolas, é de R$ 1 milhão por cada ano de descumprimento, com limite de R$ 10 milhões.
Na mesma decisão, a juíza Hallana Miranda condenou o governo paulista e sua Fundação Florestal a apresentar um projeto de estrada de acesso à comunidade e um cronograma de execução em até 120 dias. A multa por atraso é de R$ 500 mil a cada quatro meses.
A obra deve ter início em um ano, a partir da apresentação do projeto e do cronograma, com multa de R$ 500 mil para cada ano de atraso.
Contexto
A ação civil pública julgada foi proposta pela Defensoria Pública de São Paulo. Segundo o órgão, a omissão do estado no atendimento à comunidade quilombola Bombas causou um cenário de invisibilidade e abandono.
O quilombo não tem água encanada, esgoto, energia elétrica, atendimento médico regular ou educação nos ensinos fundamental e médio.
Embora tenha sido criado em 1958, o Petar só foi implementado a partir da década de 1980. Com isso, todas as atividades dos quilombolas da comunidade Bombas — incluindo a moradia — se tornaram clandestinas.
Como não houve regularização fundiária, os moradores não têm qualquer tipo de documentação. Após diversas negociações malsucedidas, a comunidade pediu o reconhecimento e a titulação do território.
A Defensoria ressaltou que outro decreto estadual, de 1999, atribui ao Itesp a identificação e a demarcação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas.
O próprio órgão autor indicou que os interesses das comunidades tradicionais não são incompatíveis com os interesses ambientais e argumentou que o quilombo e o Petar podem coexistir.
Situação desumana
Hallana Miranda lembrou o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que garante aos quilombolas a propriedade definitiva das terras ocupadas e estabelece o dever do Estado de emitir os respectivos títulos.
A magistrada ainda explicou que “o valor de um bem jurídico não é atribuído tão somente pela lei, mas pela forma de se relacionar com ele, extraído da própria experiência humana”.
Segundo ela, o domínio das terras quilombolas “não se funda apenas na proteção semelhante à propriedade privada, mas se submete a um complexo regime de preservação individual, coletiva e comunitária”.
Embora a comunidade tenha se tornado clandestina após a criação do Petar, a juíza destacou que a criação da unidade de conservação buscava, na verdade, paralisar ações de mineradoras, madeireiras e grileiros.
Ela constatou que os quilombolas do local não contam com apoio estatal para a implementação de políticas já garantidas em lei: “Não me parece que a iniciativa do estado teve como impulso a repressão da comunidade, contudo, ela o ignorou”.
Até hoje, a unidade de conservação não tem um plano de manejo. Também não houve revisão ou complementação para definir de forma precisa suas divisas conforme métodos mais recentes.
Pelas regras de unidades do tipo, é necessária autorização prévia para as roças tradicionais dos quilombolas — forma de plantio sem adubo ou agrotóxicos, mas que exige corte de pequena área de vegetação. Com isso, a comunidade “perde o tempo de plantio”.
Isso, somado à “desumana situação” dos quilombolas quanto a serviços básicos, levou a julgadora a detectar não só uma deficiência técnica do governo paulista na solução de problemas graves ou dificuldades políticas de negociação, “mas uma inércia que está dizimando a comunidade”.
“É quase inacreditável que a comunidade de Bombas ainda resista ao acúmulo de violações, e que se mantenha adaptada ao meio, sujeitando-se a um sem-número de violações estatais”, assinalou ela. “É violenta a atuação do estado nesse caso, que se orgulha de seu desenvolvimento, mas que é incapaz de garantir direitos básicos”.
Decreto x direitos
A juíza lembrou também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a obrigação dos governos de reconhecer e proteger os valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais dos povos indígenas e tribais. Ela apontou que o decreto estadual é hierarquicamente inferior à convenção.
O mesmo vale para a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), cujo artigo 42 prevê que as populações tradicionais residentes em unidades de conservação devem ser indenizadas e realocadas pelo poder público quando sua permanência não for permitida.
Quando o decreto estadual de 1958 foi publicado, ainda não existiam as normas de proteção do território quilombola. A própria Constituição atual surgiu apenas 30 anos depois.
Mesmo assim, Hallana Miranda entendeu que o decreto contraria de forma parcial a Constituição: “A vigência da Constituição como norma de categoria superior só pode ter um efeito em relação ao decreto citado: enfraquecê-lo em seu conteúdo, e, em última análise, invalidá-lo”.
Por outro lado, ela não considerou possível invalidar totalmente o decreto, pois isso “ocasionaria a desproteção de mais de 80% do território do Petar”. Na sua visão, “também há na alma do ato normativo a necessidade de proteção ambiental”.
A única possibilidade aceitável à qual a juíza chegou foi garantir a preservação máxima tanto do parque quanto do território quilombola.
Ela explicou que a Constituição não autoriza dois domínios sobre o mesmo local. Por isso, decidiu afastar a unidade que está sobreposta ao território.
A decisão não “desprotege o ambiente por reconhecer que o território deve ser outorgado aos quilombolas de Bombas”, ressaltou Miranda. “Pelo contrário, entendo que essa é a melhor forma de proteção ambiental, por assegurar a proteção de dois bens raros: a comunidade e a unidade”.
Processo 0000522-11.2014.8.26.0172
Com informações do Conjur