“Quinto dia sem o caderno aberto, o livro fechado, a mente a vagar. Lá fora, o som é duro, deserto. Operações que não deixam estudar”. Este é um trecho do poema que Ana Beatriz Alves do Nascimento escreveu para expressar suas angústias como estudante diante da falta de aulas ocasionadas pelas operações policiais no Rio de Janeiro.
“Sinto medo de ir à escola, principalmente por ser uma mulher negra, então o cuidado sempre é dobrado. Minha mãe auxilia dizendo o que devo fazer caso aconteça algo e me manda para a escola, mas sempre preocupada”, conta Ana Beatriz, 17 anos, que cursa o terceiro ano do ensino médio na escola César Pernetta. Ela foi uma das presentes no“5º Seminário de Educação da Maré: impactos da violência armada no direito à educação”, promovido pela Redes da Maré no mês passado. A Redes da Maré é uma instituição da sociedade civil que produz conhecimento, projetos e ações, através de cinco eixos de trabalho estruturais, em busca de qualidade de vida e garantia de direitos para os mais de 140 mil moradores das 15 favelas da Maré.
O evento reuniu pesquisadores, operadores do direito, movimentos sociais e moradores da Maré, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Palco de operações policiais que se intensificaram nas últimas semanas, a Maré compreende 15 comunidades cariocas e abriga milhares de crianças, adolescentes e adultos cujas rotinas escolares têm sido interrompidas diariamente pelo medo e pela insegurança. Neste mês, por exemplo, operações causaram o fechamento de 38 escolas.
Representando o MPF, o procurador regional dos Direitos do Cidadão adjunto Julio José Araujo Junior integrou a mesa “Desafios para a garantia da efetividade do direito à educação e à segurança pública”, ao lado da representante da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Eufrásia Maria Souza das Virgens, do pesquisador Rogério Barbosa (Instituto de Estudos Sociais e Políticos – Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e da pesquisadora Eblin Farage (Escola de Serviço Social – Universidade Federal Fluminense).
Julio Araujo esclareceu o papel do MPF na relação entre os direitos à educação e à segurança pública. A prevenção da responsabilidade internacional do Brasil e a necessidade de que o Ministério da Educação fixe diretrizes nacionais sobre o tema, inclusive por mecanismos de reparação, têm sido algumas das frentes de atuação. Ele apontou que a segurança pública é apontada como um argumento genérico para sustentar operações independentemente da comprovação de sua necessidade, e os dias de aula perdidos são tratados como mero efeitos colaterais.
Em contraponto a isso, o procurador defendeu que a “segurança pública” também deve ser pensada em defesa do interesse da população mais afetada pelas operações. “Precisamos discutir o direito à educação segura dos estudantes que veem suas escolas fechadas e dias perdidos. Existe uma coletividade afetada pelas operações – uma coletividade determinada e específica – que também demanda segurança. E ela quer exercer seu direito à educação, mas à educação com segurança”, afirmou.
O professor e pesquisador Rogério Barbosa, integrante da mesa, apresentou estudo que constatou que o Rio de Janeiro tem quase 1.500 escolas. Dessas, 575 estão em área de tráfico e 543 em área de milícia. “A gente tem, então, mais ou menos, 60% das escolas do Rio de Janeiro em áreas de grupo armado”, informou. “Quando a gente olha para a quantidade de alunos, e não escolas, o negócio fica ainda mais gritante. Veja só, 103 mil alunos de ensino básico vivem em áreas de tráfico no Rio de Janeiro [capital], e 263 mil em áreas de milícia. Além disso, há mais menos 340 mil no entorno metropolitano. Então a gente está falando de quase 1 milhão de alunos de ensino básico vivendo em áreas dominadas por grupos armados”.
Os números alarmantes apresentados pelo pesquisador mostram o grande volume de estudantes expostos a conflitos entre grupos armados e forças de segurança, indicando o tamanho do problema a ser enfrentado na capital e no entorno metropolitano do Rio de Janeiro. Na Maré, esses conflitos são significativos e apontam para um grande número de operações policiais.
Dados da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, que constam em procedimento instaurado pelo MPF apontam que, entre 2022 e o primeiro semestre de 2023, foram registradas mais de 832 ocorrências de operações policiais só na capital. As comunicações de operações às escolas são feitas, em alguns casos, via e-mail ou pelo Whatsapp. Já a PM-RJ informou que, no mesmo período, foram realizadas 522 operações em horário escolar na capital, com destaque para a Zona Norte, em bairros como Bangu, Jardim América, Madureira, Maré, Parada de Lucas, Pavuna e Penha. Números da Polícia Civil mostram que, entre janeiro de 2022 e setembro de 2023, foram comunicadas 121 operações no interior de comunidades em horário escolar.
Grupo de trabalho – O Ministério da Educação (MEC) propôs ao MPF, na semana passada, a criação de um grupo de trabalho ou comissão para discutir o tema dos impactos de operações policiais no funcionamento do sistema educacional e formas de reparação – sobretudo, aqueles relativos à suspensão de aulas e fechamento de escolas.
A sugestão da pasta é uma resposta a ofício expedido no início de agosto pelo MPF, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), à Secretaria de Educação Básica do MEC, solicitando informações relativas à existência de diretriz nacional sobre o tema. O motivo do ofício foi justamente o alto número de operações policiais realizadas na capital fluminense e região metropolitana em horário escolar, impactando diretamente na rotina de crianças e jovens.
Hoje, essa rotina de estudantes da Maré, como Ana Beatriz, segue confusa e repleta de incertezas. “Essas operações têm parado minha vida, porque estou no meu último ano, então a cobrança acaba sendo maior. Sem contar que minha rotina para e a ansiedade acaba ficando maior, porque sou uma jovem bem agitada”. A jovem agitada fala sobre seus projetos para o futuro e todos eles passam por um lugar: a escola.
“Meu plano é terminar o ensino médio, e, passando no Enem, pretendo me formar advogada, para conseguir trabalhar com as duas áreas que amo. Esse foco todo na escola tem feito uma grande mudança. A escola tem me dado muita força, apesar de estarmos passando por isso. Mas tenho fé de que isso tudo vai passar e que vamos voltar com mais resistência e resiliência”.