A Justiça do Trabalho lançou três protocolos de julgamento para orientar sua magistratura a analisar casos com uma visão mais ampla e contextualizada, visando identificar e combater discriminações. Os documentos propõem um olhar sem vieses ou preconceitos sobre diversidade, inclusão e combate ao trabalho escravo contemporâneo e ao trabalho infantil.
Em casos que envolvem relações desiguais ou padrões preconcebidos, é fundamental considerar fatores sociais que definem a identidade de uma pessoa, afetam sua interação com a sociedade e seu acesso a direitos. Os protocolos propõe que integrantes da magistratura devem avaliar os direitos sem partir de uma visão universal, levando em conta as particularidades de grupos historicamente estigmatizados e corrigindo possíveis omissões ou tratamentos inadequados das leis.
Nos próximos textos, exploraremos em detalhes cada um desses protocolos, começando pelo desenvolvido sob a coordenação da ministra Maria Helena Mallmann, que aborda questões de gênero, sexualidade, raça, etnia, deficiência e idade.
Para desenvolver o Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva Antidiscriminatória, Interseccional e Inclusiva, focado em gênero, sexualidade, raça, etnia, deficiência e idade, o grupo de trabalho realizou duas audiências públicas, com a participação de representantes do governo, da sociedade civil, do Judiciário e de entidades de classe. Além disso, foram recebidos memoriais escritos sobre os temas discutidos.
A primeira audiência, sobre gênero, raça e diversidade, foi promovida em 26 de janeiro e recebeu 71 pedidos de inscrições, dos quais 15 foram selecionados para falar. Em março, a segunda audiência foi uma iniciativa conjunta do grupo de trabalho, da Ouvidoria do TST/CSJT, presidida pela ministra Delaíde Miranda Arantes, e do Programa de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade, coordenado pela ministra Kátia Arruda. Foram recebidas 29 inscrições, e 15 participantes puderam expor seus pontos de vista. Entidades como a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e o Movimento da Advocacia Trabalhista Independente (Mati) apresentaram memoriais.
Violências de gênero e sexualidade no trabalho
O protocolo destaca que a violência contra mulheres e pessoas LGBTQIAP+ não é mais vista como um comportamento isolado, mas como um problema estrutural, sustentado por estereótipos de gênero e pela cultura de objetificação sexual das mulheres, em contraste com o ideal de masculinidade dominante. Ela atinge tanto as mulheres cis (cuja identidade biológica coincide com sua identidade de gênero) quando as trans.
No ambiente de trabalho, essas violências aparecem de várias formas, tanto nas relações laborais quanto no contexto da Justiça do Trabalho. Além do assédio moral e sexual, há outras formas de violência – institucional, psicológica, patrimonial e política.
Essas violências estão profundamente enraizadas na normatividade sexual e de gênero da sociedade e são alimentadas por estruturas como o patriarcado e o machismo. O patriarcado, por exemplo, perpetua a divisão desigual de poder e de oportunidades entre homens e mulheres, reforçando a desigualdade de gênero e a dupla jornada de trabalho das mulheres.
O documento enfatiza a importância de analisar as violências de gênero e sexualidade sob uma perspectiva interseccional, levando em conta a sobreposição de opressões (raça, classe, identidade de gênero, orientação sexual e deficiência). A abordagem permite entender que não existe uma “mulher universal”, mas sim diversas realidades e formas de opressão que precisam ser enfrentadas.
Raça e etnia
Sobre o tema, o protocolo alerta que o racismo no Brasil é um problema profundamente enraizado, que remonta ao período colonial. A legislação brasileira, ao longo da história, refletiu e reforçou práticas racistas. Desde a Constituição do Império de 1824, que concedia direitos plenos apenas aos homens brancos, até leis que dificultavam o acesso de negros e indígenas à terra e à liberdade, a exclusão foi institucionalizada. Mesmo após a abolição da escravidão em 1888, a ausência de políticas de inclusão deixou os ex-escravizados em situações precárias, sem acesso a direitos básicos.
O racismo, explícito ou disfarçado, ainda afeta a sociedade brasileira. O mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento continuam a marginalizar negros e indígenas, enquanto o Estado e suas instituições muitas vezes perpetuam essas desigualdades. Reconhecer e combater essa herança histórica é essencial para construir uma sociedade mais justa e igualitária.
Deficiência e idade
Esse eixo ressalta que a história das pessoas com deficiência (PcD) passou por quatro fases principais: eliminação, exclusão caridosa, integração e inclusão. No passado, culturas antigas como os romanos eliminavam crianças com deficiência, enquanto, na Idade Média, a deficiência era vista como um pecado, e as PcDs eram isoladas em instituições. Com a Revolução Industrial, surgiram tecnologias que permitiram a integração dessas pessoas, mas ainda de forma limitada.
A partir dos anos 1980, o movimento pela inclusão ganhou força, levando a ações afirmativas e à criação de políticas públicas para apoiar as PcDs. Apesar dos avanços, persistem barreiras sociais e de atitude, fenômeno conhecido como capacitismo, que impede o acesso pleno dessas pessoas à vida em sociedade.
Orientações à magistratura
De acordo com o protocolo, a perspectiva interseccional deve ser aplicada em casos que envolvam relações de poder assimétricas ou padrões estereotipados. A perspectiva de gênero deve ser utilizada em situações onde há desequilíbrio de poder ou estereótipos de gênero, garantindo a aplicação do princípio da igualdade para proteger os direitos das mulheres.
Para casos que envolvam pessoas trans, deve-se levar em conta a hipervulnerabilidade desse grupo. Na perspectiva étnico-racial, quem julga uma ação deve estar atento às diversas formas de discriminação no trabalho, considerando que o racismo muitas vezes é naturalizado ou banalizado e se torna imperceptível até para as próprias vítimas.
A perspectiva inclusiva para pessoas com deficiência indica que a discriminação pode ocorrer tanto de forma subjetiva quanto objetiva, por intenção ou por omissão. Não é necessário provar a intenção (ou dolo): basta constatar que a empresa não oferece condições adequadas de inclusão.
Por fim, a perspectiva não etarista alerta que a discriminação pode se manifestar tanto por atitudes intencionais quanto por condições objetivas que dificultem o exercício de direitos. Assim como no combate ao capacitismo, não se deve presumir que uma pessoa idosa seja incapaz de trabalhar, e deve-se exigir adaptações no ambiente para possibilitar sua participação.
Procedimentos judiciais devem preservar as vítimas
A orientação do protocolo é, que em situações de violência, discriminação e assédio, a Justiça do Trabalho deve identificar e tratar casos sensíveis de maneira diferenciada, utilizando marcadores para que esses processos sejam analisados separadamente. É essencial, por exemplo, manter o sigilo em documentos com conteúdos delicados, como fotos íntimas e trocas de mensagens que possam expor a vítima.
O documento também recomenda que as audiências sejam realizadas em horários de menor movimento, para preservar a privacidade da vítima, na presença apenas das pessoas diretamente envolvidas no processo. Deve-se evitar que a vítima e o agressor estejam no mesmo ambiente da Justiça do Trabalho ao mesmo tempo. Se necessário, devem ser designadas salas ou horários separados.
O depoimento da vítima é indispensável, desde que ela esteja em condições psicológicas e emocionais de prestar depoimento. Sua palavra deve ter peso diferenciado em relação à de testemunhas que trabalhem diretamente com o assediador, considerando que essas podem temer retaliações e não querer colaborar plenamente.
Durante os depoimentos, as perguntas não devem reproduzir estereótipos de gênero ou preconceitos que desqualifiquem a vítima. Procedimentos repetitivos ou invasivos que a levem a reviver a violência devem ser evitados. Também é importante garantir que não ocorram comportamentos machistas, racistas, transfóbicos, homofóbicos, capacitistas ou etaristas. O respeito às vestimentas étnicas e religiosas deve ser assegurado, assim como o uso de nome social e pronomes para pessoas trans e nomes étnicos para pessoas indígenas, conforme a vontade da pessoa.