A queda de 47% na arrecadação da única fonte federal de recursos para o sistema prisional somada à crescente demanda por vagas e serviços colocam o sistema prisional em risco. Os achados estão em relatório inédito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgado nessa segunda-feira (14/6) durante audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF). A audiência foi convocada pelo ministro Gilmar Mendes para discutir desafios ainda presentes cinco anos após o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional na prisões (ADPF 347), assim como a situação do cumprimento do habeas corpus coletivo da substituição da prisão cautelar por domiciliar aos pais e responsáveis por crianças menores de 12 anos e por pessoas com deficiência (HC 165.704).
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“A ADPF 347 e ordens coletivas como as que decorrem do HC são ações estruturais que impõem medidas concretas e com aptidão para impactar a desordem sistêmica que acomete os espaços de privação de liberdade brasileiros”, disse o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ (DMF/CNJ), Luís Lanfredi, ao apresentar o relatório na audiência. “A proposta do informativo é trazer a discussão para o campo técnico, a partir de evidências concretas e sensíveis, as quais denotam, após a análise do amplo mosaico de fontes consultado, que o estado inconstitucional segue atual e perseverante.”
De acordo com a publicação, como um dos principais resultados do julgamento cautelar da ADPF, o descontigenciamneto do Fupen permitiu empenho de R$ 1,9 bilhão na modalidade fundo a fundo e R$ 334 milhões em convênios, sendo que grande parte do valor (R$ 1,8 bilhão) foi destinado à criação de vagas ou melhora de infraestrutura. No entanto, além de uma execução abaixo de 40% nas duas modalidades, o sistema de dados do Executivo Federal (Infopen) aponta que houve redução de 100 vagas no período.
“A criação de novas vagas segue insuficiente porque não acompanha a velocidade desse encarceramento, e onerosa, já que não há lastro econômico-financeiro para subsidiá-la”, alegou o representante do DMF. Ele destacou o importante precedente para a efetivação do conceito de compensação penal a partir de entendimento da Corte IDH sobre as unidades penais Plácido de Sá Carvalho e Curado em 2018, assim como a importância do fortalecimento de alternativas penais. “Seguem subutilizadas e muitas vezes aplicadas para aumento da vigilância penal, sem reduzir a população carcerária e retirar de dentro das prisões aquelas pessoas que possuem condições para tanto.”
O documento evidencia que a quantidade de pessoas privadas de liberdade aumentou 9% nos últimos cinco anos – incluindo pessoas em monitoração eletrônica – e alerta que a demanda por vagas pode quadruplicar até 2025 ao custo de R$ 95 bilhões aos cofres públicos em razão das mudanças aprovadas com o Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019). A situação deverá impactar a gestão do sistema e oferta de serviços, que hoje já apresentam déficit: enquanto dados oficiais apontam melhora em estruturas, em cinco anos o percentual de pessoas privadas de liberdade com acesso a educação, trabalho e saúde ficou estagnado segundo dados do Executivo federal.
O estudo ainda confirma que se manteve o perfil de pessoa privadas de liberdade ao longo dos últimos dez anos – pobres, negras, jovens, sem acesso a oportunidades, que cometeram crimes patrimoniais ou tráfico de drogas – e que que as prisões resultam em maiores agravantes em saúde, como a chance 2,5 vezes maior de morrer assassinado e 28 vezes mais chance de contrair tuberculose. “Como fator agravante, a pandemia de Covid-19 alterou rotinas e fluxos para um sistema já pouco acessível e carente de recursos, agora com limite de abastecimento dos visitantes”, afirmou Lanfredi.
O relatório também confirma que os episódios de tortura e de maus-tratos seguem recorrentes – a quantidade de denúncias no Disque 100 triplicaram desde 2013, chegando a 9,4 mil registros em 2020. Na porta de entrada, as audiências de custódia registraram oficialmente pelo menos 44 mil episódios de tortura e maus-tratos por agentes do Estado desde 2015.
Atuação do CNJ
Há cinco anos, o julgamento cautelar da ADPF 347 determinava a realização das audiências de custódia em todo o país, entendimento que teve especial participação do CNJ para sua concretização. O instituto se consolidou nas 27 unidades da federação com cerca de 700 mil audiências realizadas desde 2015. Com a liberdade provisória concedida a mais de 280 mil pessoas, foi evitado um custo de R$ 13,8 bilhões aos cofres públicos apenas com a construção de novas vagas, sem considerar o custeio. Restam ainda desafios na padronização e na apresentação dos presos em 24h, especialmente nos lugares mais longínquos.
O coordenador do DMF também destacou que diversos pontos referentes ao CNJ mencionados no contexto do julgamento da ADPF 347 estão sendo impulsionados por meio do programa Fazendo Justiça. O programa é uma parceria em vigor desde 2019 com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Ministério da Justiça e Segurança Pública para a superação de desafios estruturais no campo da privação de liberdade. Entre os pontos trabalhados no Fazendo Justiça, estão a nacionalização de um sistema integrado de execução penal – o SEEU -, a nova metodologia de mutirões carcerários eletrônicos, os avanços em identificação civil e a própria qualificação das audiências de custódia.
“Desde o julgamento da ADPF, o programa Fazendo Justiça vem reforçando seu papel como articulador interfederativo e interinstitucional e fomentador de políticas penais. Aqui o especial destaque para a atuação do ministro Raul Jungmann, viabilizando a descentralização de significativos recursos para o CNJ e a gestão dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, liderando e estimulando todas essas ações e iniciativas, dando continuidade aos legados de Vossa Excelência e dos ministros Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia que passaram por este CNJ”, ressaltou Lanfredi.
Além de atualizar a atuação dos três poderes no campo federal e da sociedade civil, o relatório aponta caminhos para a neutralização de riscos como a regulação das vagas prisionais na mesma forma da decisão do ministro Edson Fachin para o socioeducativo (HC 143.988), o reconhecimento de medidas judiciais de compensação penal e atuação presencial do Estado somada a um programa permanente de capacitações e atualizações funcionais conectadas a princípios de direitos humanos.
Pluralidade de vozes
Durante o dia, dezenas de pessoas foram ouvidas representando instituições com atuação diversa no campo penal, incluindo o próprio Judiciário, o Executivo Federal, Legislativo, Ministério Público, Defensoria Pública, academia, entidades de classe, entidades de combate à tortura, entidades contra o encarceramento, pessoas que passaram pelo sistema e seus familiares, representantes de coletivos da sociedade civil organizada, entre outros.
A audiência pública será retomada nesta terça-feira (15/6) pela manhã para contemplar o restante da lista de pessoas e entidades inscritas, incluindo dialogo final com representantes dos tribunais. O evento será transmitido ao vivo pelo canal do YouTube da TV Justiça.
Fonte: Agência CNJ