Ex-esposa não será afastada da administração da empresa; decisão considerou perspectiva de gênero

Ex-esposa não será afastada da administração da empresa; decisão considerou perspectiva de gênero

O Juiz de Direito Gilberto Schäfer, da Vara Regional Empresarial de Porto Alegre, julgou improcedente a ‘ação de destituição de administrador’ movida por um homem que pretendia afastar a ex-mulher da função de administradora da empresa da área farmacêutica da qual seguem sócios, sendo cada um com 50% das cotas. Ele pleiteava a nomeação de um administrador judicial para a administração ou, alternativamente, para fiscalizar os atos da gestão dela. Para o Juiz, o conflito não se restringiu à questão patrimonial, estendendo-se à problemática de gênero que fez com fosse questionada a capacidade da mulher de gerir uma sociedade. A decisão é de terça-feira (17/10).

A mulher tornou-se administradora em 2019, após decisão em ação de divórcio que determinou o afastamento dele da administração. O homem seguiu com a administração de outra empresa deles no ramo automotivo.

Ao justificar o ajuizamento da ação, ele alegou que não recebeu pró-labore, lucros e que não teve mais acesso à documentação contábil. Disse que constatou irregularidades na gestão da empresa e classificou a atuação da sócia como “temerária” e em descompasso com o contrato social.

Já a mulher contestou dizendo que embora tenha havido a divisão de gestão das empresas, o ex-marido seguiu frequentando a empresa gerida por ela e realizando operações financeiras comprometedoras, o que teria resultado no afastamento dele com determinação judicial. A ré relatou que a empresa se encontra em situação peculiar, decorrente da necessidade de realização de importantes pagamentos mensais, relacionados a empréstimos contraídos ainda na gestão do ex-marido. Segundo ela, a empresa opera sem lucratividade em razão dos inúmeros empréstimos com dívidas já renegociadas, contraídas ainda na gestão dele.

Na decisão, o magistrado destaca que, embora autor e ré estivessem em condições de igualdade, cada um com 50% das cotas da empresa, o conflito societário integra outro litígio decorrente do divórcio. Em razão desse contexto, o Juiz passou a analisar a existência de questão de gênero envolvida, com a finalidade de evitar a quebra de isonomia entre as partes.

O julgamento com perspectiva de gênero foi estabelecido na Resolução nº 492, de março de 2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com aplicação no Poder Judiciário de todo o País. Em relação à partilha de bens, o ‘Protocolo de Perspectiva de Gênero’ que originou a resolução diz que “a ideia preconceituosa e equivocada acerca da divisão sexual do trabalho, na qual homens são sempre os provedores e as mulheres cuidadoras, pode acarretar distorções indesejáveis. Sendo as mulheres ‘incapazes’ de performar no mundo dos negócios, durante o desenvolvimento do litígio, muitas vezes pode-se acreditar na impossibilidade de gerir aluguéis, de ter participação nos lucros em sociedades empresariais ou mesmo de administrá-las”.

O protocolo é resultado de documentos internacionais relevantes, como a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e a Convenção de Belém do Pará. Conforme o Juiz, esses pactos integram o bloco de constitucionalidade brasileiro, formado por regras que estão acima das demais leis.

“Esses tratados buscam superar e modificar padrões socioculturais, com vistas a alcançar a superação de costumes que estejam baseados na ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos”, diz, destacando um dos artigos da CEDAW.

Segundo o magistrado, o Protocolo de Perspectiva de Gênero torna-se um importante guia para o julgamento, “produzindo densidade normativa ao princípio da igualdade, permitindo concretizá-lo pela imensa força interpretativa que proporciona”. Disse ainda que a norma de direito societário, estabelecida no Código Civil (artigo 1.063) e na Lei de Sociedades Anônimas (artigos 153 e 155), é neutra, contemplando ambos os sexos e fazendo com que os deveres de diligência e lealdade se apliquem aos administradores da limitada ou a qualquer pessoa incumbida de administrar interesses alheios.

O magistrado buscou respostas para a adversidade entre os sócios no processo de divórcio que culminou com a imposição de medidas protetivas da Lei Maria da Penha em favor da ré.

Além de ausentes provas que evidenciassem a atuação irregular da ré como sustentou o autor da ação, os elementos constantes dos autos deram conta da adequada administração pela demanda.

“A pluralidade de alegações estão eivadas de importante carga de natureza emocional, mas também com as questões de gênero que lhe são inerentes”, afirmou.

Sobre os prejuízos econômicos alegados, decorrentes da suposta má-gestão da ré, o Juiz informou que também não há elemento de prova que permita a afirmação.

Ao analisar as provas do autor e o laudo contábil, apresentado pela ré, não ficou evidenciada a má-gestão. Conforme o magistrado, o laudo, inclusive, sinaliza situação diversa da sustentada pelo autor. Ele citou decisão judicial anterior na qual ficou comprovado que na gestão da ré a empresa saiu da condição deficitária, evidenciando melhora. Além disso, as provas produzidas por testemunhas indicaram que o autor do processo, enquanto gestor anterior da empresa, não apresentava contabilidade exemplar com inequívoca confusão documental e patrimonial.

“Neste panorama administrativo, é inadmissível que o autor exija impecável administração da ré, insurgindo-se em detalhes de cada ato praticado por ela, quando se sabe que, durante sua gestão na empresa, não observou esta mesma exigência de rigor contábil. O ajuizamento da demanda, bem como a condição da prova autoral indica tentativa de tumultuar a atuação da ré, de forma a vê-la afastada da gestão. Evidencia-se nítida conduta adversarial do autor que, apesar de sócio, não demonstrou qualquer sinalização positiva pelo êxito da empresa, condição esperada por qualquer participante da sociedade”.

Cabe recurso da decisão.

Com informações do TJ-RS

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