Decisão da 13ª Vara do Trabalho de Fortaleza reconheceu o vínculo de emprego entre um entregador e a empresa Ifood. Na sentença, publicada em janeiro, o juiz do trabalho Vladimir Paes de Castro apontou a existência dos requisitos que caracterizam a modalidade de trabalho como contrato intermitente, uma prestação de serviço não contínua, na qual se alternam períodos de atividade e inatividade.
O trabalhador realizou entregas para o aplicativo de delivery no período de dezembro de 2020 a maio de 2023, quando foi bloqueado pela plataforma, sem justificativa ou possibilidade de recurso. De acordo com as normas constantes nas políticas e regras da empresa, o Ifood estabelece a possibilidade de rescisão unilateral em caso de mau uso ou uso indevido da plataforma, ou caso o entregador obtenha recorrentes avaliações negativas dos estabelecimentos e/ou clientes finais.
O magistrado declarou que a modalidade de rescisão do contrato de trabalho foi sem justa causa, então julgou procedentes os pedidos de pagamento das verbas rescisórias correspondentes: aviso-prévio indenizado e projeção nas demais verbas, férias mais 1/3 de todo o período, 13º salário, FGTS mais 40% e indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil. O valor total da condenação foi arbitrado em R$ 20 mil.
Novas formas de exploração do trabalho
Em sua sentença, o juiz argumentou contra a alegação do Ifood, de que se trataria de mera intermediadora da relação jurídica entre o cliente (restaurantes, bares e outras empresas que fornecem alimentos) e o consumidor final, na qual os alimentos seriam entregues pelos prestadores de serviço explorando a atividade conhecida como economia compartilhada.
Um exemplo desse modelo de economia seria a empresa/aplicativo Airbnb, onde o cliente que busca alugar um espaço (casa de veraneio, apartamento, flat, quarto etc.) utiliza o aplicativo para buscar locais cadastrados. A negociação é toda realizada na plataforma e com total autonomia do cliente locatário e do proprietário dos imóveis, podendo o preço e outras condições serem estipuladas e negociadas pelas partes, sem a intervenção da plataforma.
“No caso do Ifood e outras empresas/aplicativos que fornecem serviços de entrega de bens móveis, principalmente alimentos/mercadorias, a situação é bem distinta. Nessa situação, as empresas não seriam apenas consideradas como uma facilitadora do encontro de clientes e prestadores de serviços/microempreendedores, mas a própria responsável pelo fornecimento do serviço de acordo com a demanda imediata dos seus clientes”, explicou o magistrado.
Em relação ao argumento que sempre é utilizado pelas empresas para afastar a subordinação, no sentido de que os motoqueiros podem recusar a corrida, impende destacar que o art. 452-A, §3º da CLT é cristalino ao determinar que “A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente.”
Segundo o magistrado, trata-se de uma nova forma de exploração de mão de obra, trabalhadores subordinados como outro qualquer, submetidos aos direcionamentos da empresa digital, trabalhando muitas horas diárias em favor da plataforma, sobrevivendo de seu labor como motoqueiro entregador (delivery) de aplicativo, cuja atividade econômica é toda gerida pelo algoritmo do aplicativo.
Intermediação digital e subordinação jurídica
O magistrado analisou os “Termos e condições de uso – Ifood para entregadores”, que possui uma série de cláusulas que são importantes para a análise do enquadramento jurídico da relação entre a plataforma digital e os trabalhadores. Segundo o juiz, as normas demonstram o controle e gestão de toda a atividade comercial, inclusive na ocasião do recebimento de valores dos consumidores finais e pagamentos a serem realizados em favor dos entregadores, comprovando a subordinação dos trabalhadores aos direcionamentos e comandos da empresa.
Conforme Vladimir de Castro, o Ifood não se trata apenas de uma empresa de tecnologia, pois fornece efetivamente a logística para que o estabelecimento parceiro consiga entregar os alimentos e outros produtos ao consumidor final. Os valores das entregas são definidos automaticamente pelo algoritmo do aplicativo da reclamada, ou seja, o trabalhador não possui nenhuma autonomia na precificação do serviço por ele prestado.
“Todas essas normas e cláusulas contratuais demonstram um cenário de absoluta subordinação dos entregadores, sendo que a reclamada possui todo o poder empresarial e direciona as atividades do empreendimento econômico com a finalidade de prestação de serviços de transporte de alimentos (delivery)”, explicou o magistrado.
Intermediação do trabalho através do operador logístico
Antes de aferir os requisitos do vínculo de emprego diretamente, o magistrado analisou a suposta prestação de serviço do trabalhador como intermediador, conhecido como operadores logísticos. “Assim, o operador logístico se trata de mero preposto do Ifood, não tendo nenhuma relação jurídica autônoma com os entregadores a ele vinculados, atuando apenas como um funcionário do aplicativo que organiza a atividade de um número determinado de entregadores em determinados locais delimitados, sendo absolutamente nulo de pleno direito, nos termos do art. 9º da CLT, o contrato de intermediação firmado para fins de responsabilidade pelos pretensos direitos trabalhistas que possa fazer jus o ex entregador de delivery.”, observou o magistrado.
O Ifood juntou aos autos o modelo de contrato de intermediação firmado com os operadores logísticos em que ficou evidenciado que se trata de uma intermediação na prestação de serviços dos entregadores, que permanecem realizando suas atividades através do aplicativo, submetendo-se aos mesmos direcionamentos e normas da empresa, sendo que a diferença é apenas ter um intermediador formal na realização das mesmíssimas atividades de entrega de alimentos.
“Fica bem evidenciado que esse contrato é meramente formal, numa tentativa do Ifood fugir de sua responsabilidade jurídica para com os entregadores, como verdadeira contratante e gestora de toda a atividade comercial sob análise”, esclareceu o juiz.
Vínculo Empregatício Contrato Intermitente
Da análise do histórico de rotas/entregas realizadas pelo autor, concluiu-se que a partir da primeira entrega discriminada no histórico do Ifood, o reclamante passou a trabalhar em favor da empresa, realizando inúmeras entregas habitualmente, e em diversos períodos quase que diariamente. “Desta feita, verifica-se a presença inexorável do requisito da não eventualidade, sendo que a análise dessa documentação juntada pela própria reclamada revela que o reclamante trabalhava em jornada semanal habitual, laborando na grande maioria dos dias, em jornadas diárias importantes de 6h/7h/8h, conforme quantitativo de entregas realizadas por dia”, apontou Vladimir de Castro.
Em relação à onerosidade, o magistrado considerou a matéria incontroversa, e que também foi amplamente demonstrada pelo próprio “Termos e condições de uso – Ifood para entregadores” junto à contestação, bem como pela prova oral constante dos autos, em que a empresa não se desincumbiu do ônus da prova acerca das importâncias efetivamente recebidas pelo autor mensalmente.
O juiz salientou, por fim, que em processos semelhantes, o Ministério Público do Trabalho tem opinado de forma recorrente no sentido do reconhecimento do vínculo de emprego entre entregador/trabalhador e o Ifood/aplicativo. Além disso, citou jurisprudência de diversos países do mundo democrático, como França, Espanha, Reino Unido, Holanda e Alemanha, em que há o reconhecimento do vínculo de emprego em relação às empresas que fornecem serviço de transporte de pessoas e bens móveis, como alimentos.
Da sentença, cabe recurso.
Processo relacionado: 0000531-27.2023.5.07.0013
Com informações do TRT-7