A prática de trabalho em condição análoga à de escravo fere os princípios e direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), do valor social do trabalho (artigo 1º, IV), do princípio da igualdade (artigo 5º), do princípio da valorização do trabalho humano (artigo 170, caput) e da função social da propriedade (artigos 5º, XXIII, e 170, II e III). Além disso, certas infrações das leis trabalhistas ensejam reparação moral, conforme o Código Civil.
Com base nesse arcabouço constitucional e legal, a juíza Graziela Conforti Tarpani, da 7ª Vara do Trabalho de Santos (SP), condenou um empresário e três empresas das quais ele é sócio por submeter funcionários a trabalho em condições análogas à de escravo. Eles foram sentenciados, solidariamente, a pagar indenização por dano moral coletivo de R$ 1 milhão, a serem revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Outros pedidos formulados pelo Ministério Público do Trabalho também foram julgados procedentes. São eles: afastamento do empresário de suas atividades, sob pena de multa diária de R$ 20 mil; expropriação das pessoas jurídicas e o confisco de todos bens de valor econômico, com sua consequente liquidação, alienação e reversão do valor angariado ao FAT. A condenação ainda impôs aos réus o pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, fixados em 15% sobre a quantia que resultar da liquidação da sentença.
“Do cotejo entre a prova oral produzida pelo autor e a prova documental por ele colacionada, afere-se a confirmação da prática reiterada das corrés de forjar os cartões de ponto, não realizar o pagamento das horas extras, impor jornada excessiva de trabalho, não permitir a fruição do intervalo intrajornada, bem como as más condições de trabalho, não oferecendo ambiente adequado para refeição, fornecimento de comida estragada e prática de truck system”, concluiu Graziela Tarpani.
Truck system é o sistema em que o empregador promove o endividamento dos empregados por meio de compra de mercadorias comercializadas na empresa, muitas vezes a preços abusivos. No caso concreto, conforme as provas testemunhais, funcionários das lojas de artigos eletrônicos do empresário não podiam levar de casa as suas refeições nem realizá-las em locais de sua escolha, sendo obrigados a consumirem exclusivamente no restaurante do grupo econômico, mediante desconto no salário.
Ao elenco de irregularidades demonstradas nos autos, a sentença acrescentou a retenção de documento pessoal dos colaboradores e a contratação de trabalho infantil em desacordo à legislação pertinente ao menor aprendiz, ao horário escolar e ao pagamento de remuneração adequada. “Violando direito da personalidade dos empregados de forma reiterada, além da contratação de mão de obra infantil sem observar os preceitos legais, resta devida a indenização por dano moral coletivo”, frisou a juíza.
A julgadora fundamentou a sua decisão em três artigos do Código Civil: 927 (“aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”), 186 (“aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”) e 187 (“também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”).
Quanto às tutelas inibitórias deferidas a pedido do MPT (afastamento das atividades, expropriação e confisco), a julgadora observou que elas visam a impedir não apenas a prática, mas a continuação ou a repetição do ilícito, tendo por base o artigo 84, parágrafo 5°, do Código de Defesa do Consumidor; o artigo 536, parágrafo 1°, do Código de Processo Civil; o artigo 11 da Lei 7.347/85 e o artigo 243 da Constituição. Além disso, elas encontram amparo em decisões da 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho.
O MPT pleiteou indenização de R$ 2 milhões por dano moral coletivo. No entanto, Graziela Tarpani considerou cabível a quantia de R$ 1 milhão, levando-se em conta “a qualidade do ofendido, a capacidade financeira do ofensor, a gravidade da culpa e a extensão do dano, visando inibir o ofensor de futuras reincidências, ensejando-lhe expressivo, mas suportável, gravame patrimonial”. Contra sentença, a defesa dos réus interpôs recurso ordinário ao Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região.
Outro lado
Segundo a defesa dos réus PR da Silva Ursini Comércio de Informática, Trance Comercial Importação e Exportação, Ursini Restaurante e Paulo Roberto da Silva Ursini, os depoimentos das testemunhas indicadas pelo MPT estão “contaminados por rancor”.
Ela alegou que os autos de infrações lavrados por auditores fiscais apontam irregularidades ou infrações de natureza trabalhista insuficientes para caracterizar, de forma conjunta ou isolada, a condição análoga a trabalho escravo.
Processo 1000107-62.2023.5.02.0447
Com informações do Conjur