Diagnosticada com HIV/Aids há 11 anos, L. S. F., de 29 anos de idade, tem uma relação sorodiscordante com um interno, de 30 anos. Demonstrando consciência, humanidade e amor ao próximo, ela, que é mulher trans, diz que sua preocupação é não infectar o companheiro, com quem cumpre pena na Unidade Prisional do Puraquequara (UPP). L. S. F. fazia parte do público de internas que acompanhou atentamente, na manhã de terça-feira (20/02), a cerimônia de expansão dos programas de Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e de Profilaxia Pós-Exposição ao HIV à população LGBTQIA+, de forma inédita, nas unidades prisionais de Manaus.
O programa é fruto de uma iniciativa pioneira capitaneada pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, por meio do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF/TJAM), a partir de situações constatadas durante inspeção temática (voltada para a população carcerária LGBTQIA+) realizada no ano passado no sistema prisional. A implementação do programa, que teve início logo após a inspeção, inicialmente atendendo casais sorodiscordantes, conta com o apoio do Governo do Estado, da Prefeitura de Manaus e de entidades da sociedade civil.
Com o programa, os internos das unidades prisionais da capital passam, agora, a ter acesso aos medicamentos do PrEP e do PEP, que são distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e integram as medidas de prevenção de urgência já adotadas pelo Ministério da Saúde para a população em geral.
A Profilaxia Pré-Exposição consiste na ingestão de comprimidos antes da relação sexual, que permitem ao organismo estar preparado para enfrentar um possível contato com o HIV. A pessoa em PrEP realiza acompanhamento regular de saúde, com testagem para o HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). A PrEP é a combinação de dois medicamentos (tenofovir + entricitabina) que bloqueiam alguns “caminhos” que o HIV usa para infectar o organismo. Existem duas modalidades de PrEP indicadas: a PrEP diária e a PrEP sob demanda.
Já a PEP é uma medida de prevenção de urgência para ser utilizada em situação de risco à infecção pelo HIV, existindo também profilaxia específica para o vírus da hepatite B e para outras infecções sexualmente transmissíveis (IST). Consiste no uso de medicamentos ou imunobiológicos para reduzir o risco de adquirir essas infecções. Deve ser utilizada após qualquer situação em que exista risco de contágio, tais como violência sexual; relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com seu rompimento) e acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou contato direto com material biológico).
No caso de L. S. F., seu companheiro já faz uso da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), que ela conta funcionar como uma segunda barreira aliada ao uso de preservativo.
“Sei que mesmo usando medicação pode haver uma oscilação na carga viral. E em um sexo sem preservativo poderia acontecer a infecção para ele. E aí está a necessidade do meu companheiro fazer uso da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV, porque funciona como um segundo contraceptivo pois, além do preservativo, caso nós não utilizássemos, ele não viria a adquirir o vírus do HIV”, explicou ela, que toma antirretroviral.
Há 11 anos, quando L. S. F. recebeu o diagnóstico do HIV, o mundo ainda vivia a ideia da “sentença de morte” associada à infecção. Onze anos depois, ela continua fazendo tratamento de uso contínuo, tem condição de saúde estável e conta levar uma vida normal. “Há 11 anos essa era a medicação que, talvez, poderia ter mudado a minha situação e, em vez de tomar o remédio para inibir o vírus, eu tomaria a medicação para não contrair ele. Muitas pessoas morreram no passado pela ausência de uma medicação que hoje está disponível e salva vidas”, ressalta ela.
Importância
Participaram da cerimônia desta terça-feira, o juiz de Direito colaborador do GMF/TJAM, magistrado Saulo Góes; a assistente técnica Estadual do “Programa Fazendo Justiça”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luanna Marley; o secretário de Estado da Administração Penitenciária, coronel Paulo César Gomes e gerentes de unidades prisionais da capital; a diretora-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS/AM), Tatiana Amorim; a secretária-executiva adjunta de Políticas de Saúde do Estado, Carla Virgínia Benvenuto; a representante da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), Rita de Cássia Castro de Jesus; as servidoras integrantes do GMF/TJAM Anne Macêdo e Miriam Falcão; e demais autoridades.
Um total de 60 kits será repassado à população LGBTQIA+ das unidades prisionais da capital, sendo cerca de 30 somente para a cadeia do Puraquequara, informa o magistrado Saulo Góes. “Mensalmente vão receber caixas de medicamentos para a Profilaxia PrEP aquelas pessoas privadas de liberdade que solicitaram, a partir de um levantamento, fazer parte desse programa; já o PEP será oferecido sob demanda, mediante uma reserva, e quem manifestar essa necessidade será beneficiado”, ressalta o magistrado.
A iniciativa da oferta de ambas as profilaxias nas unidades prisionais locais surgiu a partir de uma inspeção do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Tribunal de Justiça do Amazonas realizada no começo do ano passado, identificando diversas situações. Foi elaborado um relatório pela equipe de inspeção, posteriormente analisado e acolhido pela supervisora do GMF/TJAM, desembargadora Luiza Cristina. O passo seguinte foi traçar uma série de demandas que, por sua vez, foram acolhidas pela Seap/AM para assegurar a saúde a essa população carcerária.
“Tal ação é mais um reflexo de mais um trabalho do GMF do Amazonas de fornecimento de saúde para a população carcerária, nesse caso específico para a população LGBTQIA+ privada de liberdade em relação ao HIV/Aids. E eu não tenho notícia de outros lugares no Brasil que possuem essa iniciativa, só em casos pontuais, e estamos muito felizes com esse resultado. Não existia um motivo para que pessoas dentro da unidade prisional não tivessem acesso a uma medicação que, fora da unidade prisional, o SUS oferece”, informou o juiz Saulo Góes.
Ao destacar o apoio da direção da Seap e de todas as pessoas empenhadas em relação a esse objetivo, o juiz Saulo Góes frisou que o programa conta com quatro frentes: a identificação de pessoas que já vivem com HIV e o fornecimento específico de medicação a elas que impede que transmitam se estiverem fazendo o tratamento correto; a PrPE; a PEP e, também, o restabelecimento de vínculo familiar com pessoas que estão fora do sistema prisional e que, por terem a condição de ser pessoas LGBTQIA+ perderam esse vínculo.
Capacitação
Neste primeiro momento de implantação da PrEP e PEP no sistema carcerário da capital, equipes de saúde de cinco unidades prisionais passaram por capacitação: Unidade Prisional de Puraquequara (UPP); Centro de Detenção Provisória de Manaus (CDPM), unidades para os públicos masculino e feminino; Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) e Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat). Com informações do Tribunal do Amazonas.