A ocultação de cadáver, por ser crime de natureza permanente, não prescreve e está fora do âmbito temporal da Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), de acordo com o entendimento da 4ª Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
O colegiado entendeu que o ex-médico legista José Manella Netto deve continuar respondendo a uma denúncia feita pelo Ministério Público Federal por ocultação de cadáver. O médico é acusado de forjar o laudo necroscópico do militante político Carlos Roberto Zanirato.
Ele foi morto em 29 de junho de 1969, quando estava sob custódia de agentes da repressão. O militante foi empurrado contra um ônibus que trafegava na Avenida Celso Garcia, na Zona Leste de São Paulo. O laudo diz que a causa da morte foi suicídio.
O legista omitiu que a vítima foi submetida a sessões de tortura. O corpo nunca foi encontrado. Quanto ao resultado forjado, o TRF-3 entendeu que o crime prescreveu e é acobertado pela Lei de Anistia, que perdoou delitos cometidos pelos militares na ditadura.
Já quanto à ocultação de cadáver, o colegiado decidiu que o crime continua sendo cometido. Por isso, está fora do âmbito temporal da lei.
De acordo com a denúncia, Zanirato foi enterrado como indigente, provavelmente no Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo.
“O núcleo do tipo penal consiste no verbo ‘ocultar’, que denota a ideia de permanência, significando ‘esconder, fazer desaparecer o cadáver’. Ressalte-se esta característica diferida do delito, porquanto, sendo permanente, sua consumação se protrai no tempo”, disse em seu voto o desembargador Ali Mazloum, relator do caso.
O magistrado foi acompanhado pelos desembargadores Luciana Ortiz, André Nekatschalow e Maurício Kato. Ficaram vencidos os desembargadores Fausto de Sanctis e Helio Nogueira.
Crime permanente
Segundo o relator, as certidões de óbito emitidas a partir da Lei 9.140/1995, que declarou mortos os desaparecidos políticos da ditadura, não têm o “condão de fazer cessar a permanência do crime de ocultação de cadáver”.
Com o reconhecimento de que os desaparecidos estavam mortos, a Lei 9.140 permitiu que familiares de desaparecidos políticos pudessem ser indenizados e passassem a ter direitos como herança.
“O crime continuava sendo praticado, pois, como dito acima, não houve a localização e a identificação do corpo. Ressalto que no crime de ocultação de cadáver a questão primordial não é o óbito da pessoa, mas o local onde o corpo está escondido”, disse o relator em seu voto.
“Diante deste quadro, torna-se imperioso concluir que o crime de ocultação de cadáver narrado na denúncia, por sua natureza permanente, teve início em 1969; eclodiu por motivos político-ideológicos; foi praticado por grupos armados, civis e militares, que agiram em afronta à ordem constitucional então em vigor; está fora do alcance da Lei de Anistia, pois o crime continuou sendo praticado a partir de 1979; ainda em curso o referido delito, já sob a égide da Constituição de 1988”, concluiu o desembargador.
Repercussão geral
Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral de um julgamento que decidirá em definitivo se a Lei de Anistia acoberta ou não os crimes cometidos pela ditadura.
A repercussão geral da discussão foi proposta pelo ministro Flávio Dino, relator do caso. Em dezembro do ano passado, ele se manifestou no sentido de que crimes permanentes não são alcançados pela Lei de Anistia, que perdoou delitos cometidos por militares durante o regime de exceção.
“No crime permanente, a ação se protrai no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia”, disse o relator em sua manifestação.
O maior entrave para a responsabilização de militares é a Lei de Anistia. Em 2010, o Supremo entendeu que a norma é constitucional.
Desde antes desse julgamento do STF, e até hoje, permanecem em aberto algumas questões. Uma delas diz respeito aos chamados “crimes permanentes”, como é o caso dos crimes de ocultação de cadáver e sequestro.
O argumento em prol do caráter permanente dos crimes não é difícil de entender: se pessoas assassinadas não tiveram o paradeiro revelado, é porque os corpos ainda estão sendo ocultados. Em casos assim, os crimes continuam sendo cometidos todos os dias. Por isso, não estariam acobertados pela Lei de Anistia, e não estariam prescritos. O buraco, no entanto, é mais embaixo quando o processo envolve militares.
Sem anistia
Para o ministro aposentado do Supremo Celso de Mello, a proposta de Dino de analisar os crimes permanentes em repercussão geral é “extremamente importante”.
Segundo ele, a Lei de Anistia abrange, em seu âmbito temporal, delitos políticos e a eles conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Isso significa, de acordo com o magistrado, que crimes permanentes não são abarcados pela norma e não prescreveram.
“Enquanto não se descobrir o local do sepultamento ou, então, enquanto as pessoas criminosamente sequestradas (‘desaparecidas’) não forem encontradas, referidos crimes continuam projetando-se no tempo, precisamente ante o seu caráter de permanência”, afirmou.
“No delito permanente (como os crimes de sequestro, cárcere privado, redução à condição análoga à de escravo, ocultação de cadáver, associação criminosa, posse irregular de arma de fogo e organização criminosa, entre outros), a situação de ilicitude penal se protrai no tempo, pois, como assinala o magistério da doutrina, ‘o agente tem o domínio sobre o momento consumativo do crime’”, prosseguiu ele.
Ainda segundo o ministro, não é possível falar em prescrição de crimes permanentes, uma vez que o autor continua em situação de flagrante delito, segundo o artigo 303 do Código de Processo Penal.
“Vejo, bem por isso, como extremamente importante a proposta do eminente ministro Flávio Dino no sentido de o STF reconhecer a existência de repercussão geral a propósito do tema concernente à possibilidade de punição de crimes permanentes, objeto da Lei de Anistia, considerado seu momento consumativo após 15 de agosto de 1979.”
Argumento antigo
A procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), afirma que há tempos o Ministério Público Federal tenta convencer o Judiciário de que os crimes permanentes da ditadura não são passíveis de anistia.
A comissão foi criada pela Lei 9.140, a mesma que reconheceu os desaparecidos como mortos, passando a emitir certidões de óbito e possibilitando o pagamento de indenizações aos familiares de vítimas da ditadura.
“A tese de que a Lei de Anistia não acoberta os crimes de sequestro e ocultação de cadáver foi uma das primeiras. Defendemos desde meados de 2005, baseada apenas na legislação brasileira. A lei anistiava atos anteriores à sua promulgação, e não atos que continuam sendo perpetrados.”
Segundo ela, a tese é óbvia e deveria ser aceita pelo Judiciário. A tendência, no entanto, é tratar os crimes dos militares, permanentes ou não, como acobertados pela Lei de Anistia.
“Quando o ministro Dino hoje fala que o Brasil não deve aplicar a Lei de Anistia aos crimes de sequestro e ocultação de cadáver, ele está falando isso com base na legislação brasileira. Foi a primeira tese que usamos. E, mesmo assim, o Judiciário sempre teve resistência. Uma resistência sem fundamento jurídico. São raros os casos em que os juízes dão andamento a esses processos.”
Eugênia considera positiva a discussão no Supremo. “A notícia é muito boa. Sempre tivemos uma expectativa alta de ter essas questões decididas já há muito tempo.” No entanto, pondera ela, é preciso “avançar mais”.
“Esperamos mais. Esperamos que se dê integral cumprimento à decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) para que determine a responsabilização por todos os crimes não anistiados, como os de lesa-humanidade, que também não estão sujeitos à prescrição ou anistia.”
O Brasil foi condenado pela Corte IDH em duas ocasiões no que se refere à ditadura. A primeira, em 2010, no caso de Gomes Lund e Outros, que trata do assassinato e desaparecimento de guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia. A segunda, em 2018, no caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog.
Processo 5002620-24.2021.4.03.6181
Com informações do Conjur