Com manual de procedimentos, CNJ tenta reduzir equívocos no reconhecimento de pessoas

Com manual de procedimentos, CNJ tenta reduzir equívocos no reconhecimento de pessoas

Para ser minimamente confiável, o reconhecimento pessoal feito pela vítima de um crime não pode ser repetido. Uma vez feito, cabe ao magistrado admiti-lo ou não no processo. E, mesmo quando ele tiver sido bem feito, deve ser cotejado com outras provas. E nunca terá valor absoluto.

Essa recomendação é do Conselho Nacional de Justiça, que publicou um manual de procedimentos para o reconhecimento de pessoas. O documento esclarece e aprofunda as rotinas que já tinham sido estabelecidas na Resolução 484/2022.

A ideia é que as vítimas de crimes praticados por desconhecidos passem por uma entrevista prévia para descrever o suspeito. Desde o momento inicial, deve-se evitar a todo e qualquer custo que haja sugestionamento.

A partir daí, o reconhecimento deve ser feito colocando o suspeito (ou sua fotografia) lado a lado com pessoas sabidamente inocentes e de características físicas parecidas. No caso das fotos, o contraste deve conter imagens de igual resolução e qualidade.

Quanto mais aderente a essas recomendações for o procedimento, maior será a qualidade da prova. Desde que ela não tenha sido repetida. Estudos científicos indicam que a memória humana é maleável e alterada conforme é exposta a novas informações acerca de um evento.

Visualizar o rosto de uma pessoa suspeita mais de uma vez faz com que a memória original seja modificada para o rosto apresentado. Nesse sentido, é também relevante que o procedimento seja feito no menor tempo possível a partir dos fatos.

Grupo de trabalho

O manual foi preparado por um grupo de trabalho instituído pelo CNJ em 2021, na esteira de uma guinada jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça no sentido da obrigatoriedade de cumprimento do artigo 226 do CPP como condição de validade da prova.

Para o ministro Edson Fachin, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência representa “um dos mais relevantes avanços civilizatórios em matéria penal desde a redemocratização do Brasil”.

A fala foi proferida no Seminário Internacional Provas e Justiça Criminal, sediado pelo STJ nesta semana e organizado pelo ministro Rogerio Schietti, que coordenou o grupo de trabalho no CNJ, em parceria com o Innocence Project.

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e juiz auxiliar da presidência do CNJ, Luís Lanfredi explicou à revista eletrônica Consultor Jurídico que o manual de procedimentos consolida o trabalho que resultou na Resolução 484/2022 e serve de norte para juízes.

A ideia é que eles usem o check list de etapas para o reconhecimento, de modo a avaliar a qualidade da prova. O documento não vincula a atuação das polícias, responsáveis pelo procedimento, mas pode influenciá-las a adotar as melhores práticas.

Provas melhores

Para Schietti, toda essa movimentação se justifica pela necessidade de melhorar os procedimentos e, com isso, a qualidade da prova, de modo a evitar erros judiciais. “Precisamos fazer um exame de consciência para mudar esse quadro que vivemos aqui.”

O quadro é grave muito por causa do desrespeito ao que fixa o artigo 226 do CPP. No evento no STJ, todas as mesas foram precedidas de vídeos com pessoas que foram injustamente acusadas e presas por causa do reconhecimento falho.

Presidente da Seção Criminal do TJ-SP, o desembargador Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho afirmou que o próprio sistema de Justiça colabora para a ocorrência desses erros.

“Nenhum juiz tem intenção de condenar um inocente. A questão é que ele julga pela percepção alheia. Ele não presencia os fatos, então forma sua convicção a partir do que disseram a vítima, a testemunha, o réu e as provas. Se essa percepção é distorcida por um reconhecimento equivocado, ele forma uma percepção equivocada.”

Para a promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Daniela Favaro,é preciso evitar que o processo penal seja usado para convencer o juiz da veracidade dos fatos que são apresentados pela acusação. A prova busca a verdade real, o que leva à necessidade de valorizar o devido processo (due diligence).

Assim, a investigação deve ser completa, exaustiva, imparcial e célere. O dever de investigar é uma obrigação de meio, e não de resultados. “Como atores do sistema de Justiça e como estamos extremamente próximos à policia, temos de buscar a qualificação dessa prova.”

Risco de erros

Secretário Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Mário Sarrubbo destacou que, quando um procedimento começa viciado, ele tem uma chance muito maior de terminar em um erro gravíssimo da Justiça. E contou uma experiência própria para exemplificar a importância disso.

Sarrubbo relatou que, por volta de 2003, foi vítima de um roubo dentro do metrô de São Paulo. Um suspeito foi preso e reconhecido por ele na delegacia. Era um homem cabeludo e barbudo. Meses depois, o secretário teve de ir ao fórum para confirmar o reconhecimento em juízo e lá encontrou uma pessoa totalmente diferente, careca e sem barba.

No corredor antes da audiência, ele abordou o réu e explicou que, no dia do crime, estava indo dar uma aula, que foram levados alguns disquetes com um material importante e que gostaria de recuperá-los. O homem pediu desculpas e disse que não se lembrava onde havia jogado os disquetes.

“Foi o que me deu segurança para dizer que realmente tinha sido ele, mas isso é algo inaceitável, em termos de Justiça e do sistema democrático em que todos nós trabalhamos. Se eu tivesse de me submeter ao reconhecimento sem essa conversa prévia, eu não teria a menor condição de fazê-lo.”

Com informações do Conjur

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