Uma pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF) constatou que apenas duas de 27 megachacinas ocorridas durante operações policiais no estado do Rio de Janeiro, no período de 2007 a 2022, resultaram em denúncia à Justiça. Segundo o Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades (Geni) da UFF, responsável pela pesquisa, o termo megachacina refere-se a ações que resultam em oito mortos ou mais.
O Geni/UFF verificou que, no período de 15 anos, houve cerca de 600 chacinas (quando há pelo menos três mortes) ocorridas em ações policiais, que somaram mais de 2,6 mil mortos.
O grupo debruçou-se sobre as 27 chacinas, dentre essas mais de 600, que tiveram oito mortes ou mais, e constatou que apenas duas delas chegaram às mãos da Justiça, na forma de denúncia do Ministério Público do estado (MPRJ). Os dois casos foram no Jacarezinho, um em maio de 2021 (que teve 27 civis e um policial mortos) e outro em fevereiro de 2010 (com oito civis mortos).
“A taxa de denúncia do Ministério Público é bastante baixa quando elas se referem a mortes perpetradas por policiais. Isso é muito ruim porque se trata de uma sinalização para os policiais de que suas ações, mesmo quando atuam de forma violenta e brutal, não terão consequência”, destaca o pesquisador do Geni/UFF Daniel Hirata.
Mesmo quando o caso chega à Justiça, as investigações nem sempre conseguem elucidar as circunstâncias de todas as mortes. No caso da chacina de maio de 2021 no Jacarezinho, por exemplo, das 27 mortes de civis, apenas três foram denunciadas com autoria, enquanto as investigações dos outros 24 homicídios foram arquivadas.
“Há uma enorme dificuldade de realizar essa responsabilização. Tem elementos que são estruturantes que se aplicam a muitos casos aqui no Rio de Janeiro. O primeiro deles é que a perícia é realizada pela própria Polícia Civil. Como a gente pode garantir uma independência pericial em ações que envolvem os próprios policiais civis [como investigados, como no caso do Jacarezinho]. Ademais, temos vigente a Súmula 70 [do Tribunal de Justiça] no estado do Rio, que permite que o testemunho de policiais seja prova única nesses casos. Fica muito complicado conseguir fazer uma investigação”, argumenta Hirata.
Em 12 casos, o inquérito está em andamento (dez nas mãos da Polícia Civil e dois pelo MPRJ). Seis deles (todos inquéritos da Polícia Civil) estão sendo investigados há mais de dez anos. O caso do Complexo do Alemão, por exemplo, com 19 mortos, ocorreu em fevereiro de 2007 e, até agora, a investigação não foi concluída, segundo o Geni/UFF.
Dos 13 casos restantes, dois foram arquivados e 11 nem sequer foram localizados pelo grupo. “Isso tem uma relação com a opacidade que caracteriza o Estado brasileiro de forma mais geral. Há pouca transparência em relação aos dados. Em particular, ao sistema de Justiça Criminal, ou seja, a área de segurança pública. Isso impede o debate público assentado em dados”.
Segundo o levantamento, das quatro chacinas com maior número de mortos, três ocorreram em 2021 e 2022: a chacina de maio de 2021 do Jacarezinho; Penha (em maio de 2022, com 23 mortos) e Alemão (em julho de 2022, com 16 mortos).
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Polícia Militar do Rio informou que, desde 2017, a corporação vem reduzindo seus índices de letalidade. Segundo a polícia, as ações de enfrentamento ao crime organizado são planejadas com base em informações de inteligência, têm critérios técnicos e são feitas dentro da legislação.
A Polícia Militar informou que tem uma preocupação central com a preservação de vidas, mas destaca que esse combate ao crime é complexo.
A nota destaca que, somente neste ano, prendeu mais de 11 mil criminosos, apreendeu mais de 1,4 mil adolescentes em conflito com a lei e retirou das ruas quase 2,5 mil armas (entre elas 216 fuzis).
“Sobre os índices de letalidade violenta em todo o estado do Rio de Janeiro, o comando da corporação destaca que esses números representam o elevado grau de resistência, por parte dos criminosos armados que atuam nas localidades espalhadas por todo o território fluminense. O governo do estado vem investindo em equipamentos para que as ações da Polícia Militar sejam cada vez mais técnicas e seguras para os policiais e a sociedade”, diz a nota.
A Polícia Civil informou que suas operações são realizadas com base em decisões estratégicas e operacionais, por meio de investigações e inteligência. Além disso, disse sempre priorizar a preservação de vidas de seus agentes e dos cidadãos.
“Se tem alguma megachacina aqui é contra a honra dos policiais, que diariamente dão o sangue e a própria vida para proteger a população do estado do Rio de Janeiro. Uma chacina é a morte ilegal, indeterminada e de forma aleatória de várias pessoas ao mesmo tempo. E isso não tem nada a ver com uma operação policial, que é uma ação legítima do Estado, feita de forma planejada para cumprimento de ordens judiciais contra integrantes de organizações criminosas que geralmente reagem com extrema violência e tiros de fuzil, granadas e táticas de guerrilha contra ações policiais”, afirma o diretor-geral de Polícia Especializada da Polícia Civil, Felipe Curi, em vídeo enviado pela assessoria da corporação.
Segundo ele, o relatório do Geni/UFF está rotulando as operações policiais como chacinas e megachacinas “sem qualquer critério técnico, científico, jurídico e metodológico”. “Em outras palavras, estão chamando os policiais de assassinos e mega-assassinos, o que é um verdadeiro absurdo. Em muitas das operações policiais que constam desse relatório já ficou provado que os policiais agiram em legítima defesa. E a lei brasileira diz que não há crime quando qualquer pessoa age em legítima defesa. Para outras ações que ainda estão em apuração, é leviano fazer qualquer acusação ou pré-julgamento”, disse Curi.
Já o MPRJ destacou que, nos últimos dois anos, tem feito esforços para reduzir a letalidade policial e citou iniciativas como a criação do Grupo Temático Temporário – Operações Policiais (GTT-ADPF 635-STF), a Coordenadoria de Segurança Pública e a Coordenadoria-Geral de Promoção da Dignidade da Pessoa Humana.
“Também foi criado um canal para atendimento à população, por meio de um inédito serviço de Plantão 24h, destinado ao recebimento de denúncias de abusos por parte de agentes de segurança do Estado durante operações policiais. Por fim, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Investigação Penal (CAO Investigação Penal/MPRJ) informa que as investigações da maior parte dos casos referidos ainda estão em andamento, sendo necessário aguardar suas conclusões para podermos ter dados estatísticos sólidos”, diz a nota divulgada pelo MPRJ.
Com informações da Agência Brasil