Por João de Holanda Farias, Advogado, egresso do Ministério Público do Amazonas
“O direito penal não pode corrigir aquilo que o direito civil não confirma.” — Reflexão sobre coerência sistêmica no ordenamento jurídico.
É cada vez mais comum nos depararmos com decisões judiciais que, na esfera cível, protegem o consumidor contra cobranças abusivas baseadas em apuração unilateral de consumo por concessionárias de serviço público. A jurisprudência tem reconhecido que, sem perícia técnica contraditada e sem observância do devido processo legal, não há como legitimar o lançamento de débitos por supostos “consumos não registrados”.
Contudo, em sentido oposto — e com impactos muito mais severos —, nota-se que ações penais por furto de energia elétrica vêm sendo admitidas com base em documentos administrativos da própria empresa, como autos de inspeção e termos de ocorrência, sem perícia técnica judicial e sem contraditório prévio.
Essa incoerência entre o padrão exigido no cível e o relaxamento admitido no penal levanta uma pergunta fundamental: por que a mesma dúvida que anula a cobrança é suficiente para sustentar uma acusação criminal?
A indagação que comporta resposta
Nos processos cíveis, o auto de inspeção unilateral não basta para fundamentar cobrança, exigindo perícia técnica com contraditório e respeito à ampla defesa. Já na esfera penal, o mesmo auto pode servir como indício suficiente para a abertura da persecução criminal, mesmo sem perícia. Enquanto no cível prevalece o princípio do in dubio pro consumidor, no penal adota-se o in dubio pro societate, permitindo o prosseguimento da ação penal, leia-se, tecnicamente correta, porém injusta.
O alerta que precisa ser feito
O risco que emerge dessa assimetria é claro: a criminalização da dúvida. Se o próprio Judiciário entende, no cível, que não há elementos suficientes para constituir uma dívida, como é possível que, no penal, a mesma fragilidade fática e técnica fundamente uma imputação por crime de furto?
Estamos, com isso, colocando o Direito Penal a serviço de lógicas administrativas falhas. Isso inverte a lógica do sistema jurídico: em vez de a prova robusta ser pré-requisito para a restrição de direitos, a mera suspeita passa a bastar quando se trata de punir.
É hora de reafirmar que o penal é última ratio, e não pode ser convertido em meio de coação indireta nem de compensação por falhas na esfera contratual. A responsabilidade criminal não pode prescindir de dolo, conduta, e prova qualificada.
O sistema de justiça deve buscar coerência. Quando a dúvida no cível serve para anular uma cobrança, essa mesma dúvida não pode sustentar uma acusação criminal.