Por João de Holanda Farias, Advogado
Em diversas cidades brasileiras, consumidores continuam enfrentando uma prática abusiva disfarçada de procedimento regular: a exigência, por parte de concessionárias de serviços essenciais, de que assumam dívidas de antigos ocupantes de imóveis como condição para manter ou restabelecer o fornecimento de água, energia ou gás. É a chamada “herança invisível” de quem se torna, muitas vezes, a primeira pessoa juridicamente regular no local.
Essas cobranças ocorrem mesmo quando o novo ocupante nada teve a ver com o débito anterior, tampouco com eventuais fraudes constatadas pela empresa, como desvio de ramal ou adulteração do hidrômetro. A lógica da concessionária é direta: “Se não assumir, ficará sem o serviço.” E o consumidor, vulnerável, acaba assinando parcelamentos que jamais deveria suportar, apenas para evitar o colapso do funcionamento da sua casa ou negócio.
A situação se agrava quando essas disputas chegam ao Judiciário, especialmente no âmbito dos Juizados Especiais. A celeridade processual, valor em tese positivo, muitas vezes atropela o dever de aprofundamento na análise dos fatos. Em muitos julgados, verifica-se que não há apuração concreta da autoria da irregularidade; a empresa apresenta uma ordem de serviço genérica e uma fotografia do hidrômetro, e isso basta para que o consumidor seja responsabilizado.
É nesse ponto que se instaura a injustiça formal: a decisão é legal, mas profundamente injusta. O consumidor, presumidamente de boa-fé, é penalizado por ato de terceiro, sem que se tenha verificado quem era o titular da conta quando ocorreu a suposta fraude, ou se houve qualquer indício de participação ou benefício por parte do novo ocupante.
Esse padrão não é isolado. A jurisprudência de diversos tribunais tem se pronunciado — ainda que pontualmente — em sentido contrário a essa prática abusiva:
TJSP – Apelação Cível nº 1001763-37.2020.8.26.0451: a 34ª Câmara de Direito Privado decidiu que é indevida a exigência de pagamento de débitos anteriores por parte de novo morador, sob pena de negativa de fornecimento de água.
TJMG – Apelação Cível nº 1.0387.17.000182-2/001: reconheceu que o vínculo contratual é personalíssimo, e que a concessionária não pode vincular o fornecimento ao adimplemento de dívida deixada por ocupante anterior.
STJ – REsp 1.412.256/SP: em caso de energia elétrica, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou que a dívida de usuário anterior não pode ser imposta ao atual morador como condição para fornecimento de serviço público essencial.
Apesar dessas decisões, o cotidiano forense segue revelando o contrário: julgamentos sumários, ausência de provas individualizadas, e uma tendência dos juízos de primeiro grau e turmas recursais a ratificarem a posição da empresa em detrimento da vulnerabilidade do consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor e o princípio da dignidade da pessoa humana exigem o contrário. A responsabilidade por fraudes ou inadimplência deve ser pessoal, específica e comprovada. E o Judiciário tem o dever de zelar por isso, inclusive — e principalmente — nos Juizados Especiais.
A naturalização da cobrança de terceiros contra inocentes revela um descompasso estrutural entre a lei e sua aplicação. Se a Justiça não protege o vulnerável quando ele mais precisa, ela corre o risco de se tornar apenas mais uma engrenagem do sistema que oprime.
A conta é de outro. Mas, no Brasil, quem paga é você.