Em uma manhã de patrulhamento na cidade de Bauru (SP), dois policiais militares transitavam pela zona oeste da cidade quando, ao passar pela Vila Industrial, em conhecido ponto de tráfico de drogas, depararam-se com situação que entenderam como possível flagrante: um homem negro estava parado junto ao meio fio em frente a um veículo, como se estivesse vendendo ou comprando algo.
A situação, descrita dessa forma no auto de prisão em flagrante, levantou dúvidas na 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça quanto à presunção racial na abordagem policial. Quando a viatura se aproximou, o carro arrancou e o suspeito foi pego com 1,53 g de cocaína, fato que levou a condenação a sete anos e 11 meses de prisão em regime inicial fechado.
Em julgamento em 14 de setembro, o ministro Sebastião Reis Júnior levantou o tema no colegiado. Observou que, ao que tudo indica, a fundada suspeita dos dois policiais militares que estavam na viatura foi a cor da pele do suspeito, único elemento descrito por ambos ao justificar a busca pessoal.
“Não se falou de altura, de fisionomia, se tinha cabelo, se tinha barba. A única referência era a pele negra. E a situação era de uma pessoa parada do lado de um carro”, afirmou. “Para mim, ficou claro que o motivo da aproximação foi por se tratar de pessoa negra. Não tenho a menor dúvida disso”, disse.
Assim, propôs reconhecer, de ofício, a abordagem como nula, diante da manifesta ausência de fundada suspeita que pudesse justificá-la. Consequentemente, os elementos probatórios cairiam também, levando à absolvição do réu.
O tema não foi suscitado pela defesa no Habeas Corpus, em que o pedido era de redimensionamento da pena. Por isso, a subprocuradora da República Luiza Frischeisen pediu a palavra e se insurgiu contra a proposta. Disse que, embora seja possível a presença do componente racial no caso, foram produzidas outras provas. “Aqui estamos falando de dosimetria [da pena]“, ressaltou.
A proposta de Sebastião Reis Júnior não convenceu os demais ministros da 6ª Turma. Para eles, embora o componente racial seja um problema intrínseco nas questões policiais no país, o caso traz uma relevante dúvida: se houve um ato de racismo ou se, simplesmente, os policiais usaram uma expressão, ainda que absolutamente desnecessária, para se referir ao suspeito, de modo descritivo.
“Eu entendo que existe o componente racial. O número de abordados em ações policiais é predominantemente de negros. Mas não posso afirmar, categoricamente, que a razão da prisão dessa pessoa foi em razão da cor”, disse o ministro Rogerio Schietti. “Essa é a minha dúvida”, concordou o ministro Antonio Saldanha Palheiro.
O desembargador convocado Olindo Menezes ressaltou que é uma situação que comporta várias leituras. “Podemos entender que ele [policial] quis dar um elemento identificador ou que a abordagem foi porque a pessoa era negra”, pontuou. Assim, votou com a divergência.
A ministra Laurita Vaz também divergiu, ponderando que o tema, de alta relevância, pode ser discutido de maneira mais aprofundada em um caso melhor que chegue ao STJ — em que as nuances estejam mais bem definidas.
A questão racial
A problemática situação racial e socioeconômica vivida no país, longe de passar ao largo das considerações dos ministros do STJ, frequentemente permeia os julgamentos. Não à toa, recentemente a jurisprudência da 6ª Turma, endossada também pela 5ª Turma, deu passos largos no sentido de tomar posicionamento mais incisivo em matérias que contavam com certa leniência do Judiciário em prejuízo aos réus, quase sempre moradores de periferia e marginalizados.
Foi quando restringiu as hipóteses de invasão de domicílio sem autorização judicial, determinando que os policiais devem gravar e comprovar a autorização conferida por moradores. Ou ainda quando vetou o uso do reconhecimento de suspeito por foto como suficiente para embasar condenação criminal e proibiu o Tribunal de Justiça de São Paulo de aplicar regime fechado a condenados por tráfico de drogas na modalidade privilegiada.
Também é verdade que a população negra e periférica continua sendo alvo preferencial das investidas policiais. Dados do Monitor da Violência divulgados em abril de 2021 dão conta de que, nos estados que indicam a raça das pessoas mortas pelas suas polícias, 78% das vítimas são negras.
Já a pesquisa Policiamento Ostensivo e Relações Raciais, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), indicou que negros têm de três a sete vezes mais chances de serem baleados pela polícia. E um estudo do Instituto Locomotiva, em parceria com a Central Única de Favelas (Cufa), identificou que 50% dos negros já sofreram algum constrangimento pela polícia.
A Câmara dos Deputados tem uma comissão de juristas em funcionamento com o objetivo de aperfeiçoar a legislação sobre racismo, cujo presidente é o ministro Benedito Gonçalves — o único ministro negro nos tribunais superiores. E a ONU, em junho, publicou relatório em que diz que a discriminação racial e o uso de força excessiva pela polícia estão enraizados em diversos países, inclusive na América Latina.
A urgência do tema foi o que levou o ministro Sebastião Reis Júnior a levantar a discussão, de ofício, no caso julgado pela 6ª Turma. Em aditamento ao voto — e também nos debates durante o julgamento — ele destacou que não vê necessidade de aguardar um processo “melhor” para examinar tais circunstâncias.
“Em dez anos de Tribunal, não me lembro de um processo em que a autoridade policial tenha dito, abertamente, que só fez a abordagem do suspeito em razão de sua cor”, justificou.
Como sua proposta ficou vencida, a conclusão final do colegiado foi por conceder a ordem para redimensionar a pena para dois anos e 11 meses de reclusão, estabelecendo regime aberto com substituição da pena privativa de liberdade por duas medidas restritivas de direitos a serem fixadas pelo Juízo das Execuções Criminais — no formato do que foi pedido pela defesa na impetração.
O HC foi impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo (defensor Pedro Henrique Pedretti Lima).
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Fonte: Conjur