A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça vai definir se os condenados por crimes que são assistidos pela Defensoria Pública precisam comprovar que não podem pagar a pena de multa para obter a extinção da punibilidade depois de cumprir a pena privativa de liberdade.
O tema é de grande impacto para a ressocialização dos encarcerados e se insere numa discussão que se arrasta nas cortes superiores brasileiras há pelo menos dez anos.
A extinção da punibilidade marca o momento em que o Estado não pode mais continuar punindo a pessoa que cometeu um crime. Ela se dá, entre outras hipóteses, com a declaração do juiz da Execução Penal de que a pena foi integralmente cumprida.
Isso vale, inclusive, para a pena de multa. A jurisprudência brasileira variou ao longo dos anos, mas a posição mais recente é de que o pagamento não pode ser exigido para obtenção da extinção da punibilidade se o apenado comprovar que não tem condições de fazê-lo.
Para as Defensorias Públicas brasileiras, conferir ao condenado o ônus de produzir essa prova não está dando certo. Eles são, em sua maioria, pessoas com limitações socioeconômicas severas. A comprovação da hipossuficiência se torna uma prova diabólica.
Foi a partir desse cenário que a 3ª Seção do STJ admitiu dois recursos especiais com o objetivo de revisar a tese vigente. O colegiado vai avaliar se o fato de alguém ser representado por defensores públicos pode levar à presunção de que não tem condições de pagar a pena de multa.
Os recursos foram ajuizados pela Defensoria Pública de São Paulo. O relator é o ministro Rogerio Schietti.
Ônus da prova
O ônus da prova nesse caso foi definido no acórdão da 3ª Seção, quando houve a última revisão de tese, em 2021. O ministro Schietti apontou que o melhor critério para saber da efetiva capacidade de pagar a multa é “a prudente e motivada avaliação judicial, no exame de cada caso, ante os argumentos e as provas apresentadas pelo interessado”.
Há juízos e tribunais pelo Brasil que dispensam essa comprovação quando o apenado é assistido pela Defensoria Pública. Os Ministérios Públicos, como entes habilitados a cobrar a multa, têm recorrido ao STJ, onde há registros de decisões favoráveis, mediante a aplicação da tese.
Adriana Patrícia Campos Pereira, Defensora Pública de Minas Gerais, explica que, para o apenado, seria muito fácil pagar a multa e se livrar de vez das restrições. O problema é que há leis — especialmente a Lei de Drogas — que trazem previsão severa para definição do valor.
O cenário se torna mais grave nos crimes comuns ligados à pobreza, como tráfico de drogas, roubo e furto. Segundo dados do levantamento Nacional de Informações Penitenciarias (INFOPEN) de 2019, eles correspondem a 79,1% dos apenados no Brasil.
“Quando você coloca sobre o acusado condenado o ônus de realizar essa prova, ela nem sempre é simples. Isso contraria o norte do direito de não exigir prova negativa. É muito difícil e se torna uma prova perversa”, avalia Adriana, que integra o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (Gaets).
Consequências
A defensora pública por MG ainda alerta que impedir a extinção da punibilidade por conta da pena de multa cria um círculo vicioso para os mais pobres que fatalmente os leva de volta à criminalidade.
Sem a extinção, o apenado não consegue a reabilitação, que nos termos do artigo 93 do Código Penal assegura o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação.
E sem o sigilo, não consegue a certidão negativa de antecedentes criminais, sem a qual a busca por emprego formal fica extremamente prejudicada.
Enquanto não extinta a punibilidade, permanece a suspensão dos direitos políticos. O condenado não consegue regularizar o título de eleitor. Logo, não pode votar, se matricular em instituição de ensino público, exercer cargos públicos concursados.
Se o condenado não tiver CPF, não conseguirá expedir esse documento, devido à ausência do título de eleitor. Por isso, não obterá carteira de trabalho, crédito em instituições bancárias ou acesso a benefícios sociais.
Nos termos do artigo 114 do Código Penal, a pena de multa seguirá válida por dois anos, se ela for a única sanção imposta ao condenado, ou pelo mesmo período referente à privação de liberdade.
Uma pessoa condenada a pena máxima admitida no Brasil de 40 anos terá que esperar mais 20 anos com essas restrições até estar realmente livre da justiça criminal. Para o Gaets, esse é um elemento que leva à perpetuação da punição.
Ajuste fino
O tema permitira ao STJ fazer a terceira revisão da tese. Inicialmente, a 3ª Seção definiu em 2015 que o réu que cumpre a pena privativa de liberdade tem a extinção da punibilidade decretada mesmo se ainda não pagou a pena de multa.
A posição na época foi de que essa sanção pecuniária, como dívida de valor, poderia ser cobrada pela Fazenda Nacional, mas sem efeitos no campo penal.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal tratou do tema na 12ª Questão de Ordem apresentada na Ação Penal 470, que julgou o caso do mensalão. Pensando nos autores dos crimes de colarinho branco, a conclusão foi outra.
O Plenário do STF fixou que o MP tem legitimidade para cobrar multa em condenações penais, com a possibilidade subsidiária de cobrança pela Fazenda. A posição foi a mesma na ADI 3.150, julgada em conjunto na ocasião.
A partir daí, as turmas criminais do STJ fizeram adequação. Ainda assim, os recursos continuaram subindo para julgamento, inclusive com pedidos de modulação da chamada “jurisprudência maléfica”. Isso levou a 3ª Seção a readequar a tese, em dezembro de 2020.
Menos de um ano depois, o colegiado mudou de novo, dessa vez para deixar claro que a multa deve mesmo ser paga, exceto nos casos em que o apenado comprovar sua miserabilidade.
Fonte Conjur
REsp 2.024.901
REsp 2.090.454