Criada para prevenir e combater a violência doméstica e familiar, garantir punição com mais rigor aos agressores e proteger a mulher agredida, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completou 15 anos nesse sábado, 7 de agosto.
A lei cumpre determinações estabelecidas pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da Organização dos Estados Americanos (OEA), aprovada em Belém em 1994 e promulgada pelo Brasil em 1996, por meio do Decreto 1.973.
O nome da lei é uma homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia, que ficou paraplégica depois de levar um tiro disparado pelo próprio marido, em 1983.
Ao alterar a redação da alínea f do inciso II do artigo 61 do Código Penal, o novo diploma legal possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico e familiar sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada.
A lei também aumentou o tempo máximo de detenção no caso de lesão corporal leve em contexto familiar e doméstico, de um para três anos, estabelecendo ainda medidas como a saída do agressor do domicílio e a proibição de que se aproxime da mulher agredida e dos filhos.
Maior proteção jurídica para as mulheres
Para o ministro Rogerio Schietti Cruz, a evolução legislativa ocorrida na última década evidencia uma tendência, também verificada em âmbito internacional, à valorização e ao fortalecimento da vítima, particularmente a mulher, no processo criminal.
Segundo o ministro, é papel das instituições que defendem a liberdade humana e o Estado Democrático de Direito criar mecanismos para fortalecer a mulher, “vencendo a timidez hermenêutica” na reprovação à violência doméstica e familiar. “O padrão sistemático de omissão e negligência em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras vem sendo pouco a pouco derrubado”, acrescentou.
Na comemoração dos 15 anos da Lei Maria da Penha, esta reportagem especial apresenta 15 interpretações do Tribunal da Cidadania que têm ajudado o Poder Judiciário a derrubar o padrão de omissão e negligência a que o ministro se refere.
Embora os índices de violência ainda sejam alarmantes – a cada ano, cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas no Brasil, segundo dados do suplemento de vitimização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) referente a 2009 –, por meio dos julgados do STJ é possível perceber que as mulheres estão, cada dia mais, abrindo a porta de suas casas para a entrada da Justiça.
1 – Suspensão do processo e transação penal
Em um passo importante nessa evolução jurisprudencial, o STJ editou, em 2015, a Súmula 536, na qual estabeleceu que a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Maria da Penha, sendo proibida a concessão de benefícios da Lei 9.099/1995 – Lei dos Juizados Especiais.
No HC 196.253, a defesa de um homem condenado por agredir sua companheira solicitou a suspensão do processo por considerar que o artigo 41 da Lei Maria da Penha não vedaria a concessão do benefício quando se tratasse de contravenção penal.
Ao negar o pedido, o relator, ministro Og Fernandes, afirmou que, “alinhando-se à orientação jurisprudencial concebida no seio do Supremo Tribunal Federal, a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de serem inaplicáveis aos crimes e contravenções penais pautados pela Lei Maria da Penha os institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/1995, entre eles, a suspensão condicional do processo”.
2 – Ação pública incondicionada
No mesmo ano, o tribunal editou a Súmula 542, fixando que “a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada” – ou seja, a propositura da ação fica a cargo do Ministério Público e não depende de representação da vítima.
Além disso, em 2017, a Terceira Seção revisou entendimento adotado no rito dos recursos repetitivos (Tema 177) para ajustá-lo à jurisprudência do STF, estabelecendo que também nos crimes de lesão corporal leve cometidos contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a ação é pública incondicionada (Pet 11.805).
De acordo com o ministro Rogerio Schietti Cruz, autor da proposta de revisão de tese, a alteração considerou os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
3 – Substituição de pena
Outro passo significativo foi dado pelo tribunal, também em 2017, com a aprovação da Súmula 588, definindo que a prática de crime ou contravenção contra a mulher no ambiente doméstico, com violência ou grave ameaça, impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Segundo o ministro Ribeiro Dantas, relator do HC 590.301, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, conforme o artigo 17 da Lei Maria da Penha.
“A Lei Maria da Penha veda a aplicação de prestação pecuniária e a substituição da pena corporal por multa isoladamente. Por consequência, ainda que o crime pelo qual o réu tenha sido condenado tenha previsão alternativa de pena de multa, como na hipótese, não é cabível a aplicação exclusiva de tal reprimenda em caso de violência ou grave ameaça contra a mulher”, afirmou.
4 – Princípio da insignificância
A Súmula 589 do STJ preceitua ser inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou nas contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.
No julgamento do AgRg no REsp 1.743.996, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca explicou que a jurisprudência do tribunal veda a aplicação do princípio da insignificância, mesmo que o casal tenha se reconciliado após o episódio de violência.
Segundo o ministro, “não incidem os princípios da insignificância e da bagatela imprópria aos crimes e às contravenções praticados mediante violência ou grave ameaça contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, dada a relevância penal da conduta”.
5 – Indenização por dano moral
Nos casos de violência doméstica contra a mulher, “é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não indicada a quantia, e independentemente de instrução probatória específica”.
Essa foi a tese fixada em 2018 pela Terceira Seção ao julgar recursos especiais repetitivos (Tema 983) que discutiam a possibilidade da reparação de natureza cível por meio de sentença condenatória nos casos de violência doméstica.
O relator, Rogerio Schietti, destacou que a Lei Maria da Penha passou a permitir que o juízo criminal decida sobre reparações relacionadas à dor e à humilhação da vítima, as quais derivam da prática criminosa e possuem difícil mensuração e comprovação.
O que se tem de provar, segundo ele, é a própria imputação criminosa; uma vez demonstrada a agressão à mulher, “os danos psíquicos dela derivados são evidentes e nem têm mesmo como ser demonstrados”.
6 – Desnecessidade de coabitação
Um dos questionamentos enfrentados pelo STJ foi sobre a necessidade de coabitação para a caracterização da violência tratada nos dispositivos da Lei Maria da Penha.
O tribunal decidiu então que a relação existente entre o sujeito ativo e o passivo deve ser analisada em face do caso concreto para verificar a aplicação da lei, sendo desnecessário que se configure a coabitação entre eles (HC 184.990). No caso analisado pela Sexta Turma, foi reconhecida a aplicação da Maria da Penha por existir relação íntima de afeto familiar entre os agressores e a vítima.
“A hipótese, portanto, se amolda àquele objeto de proteção da Lei 11.340/2006, já que caracterizada a relação íntima de afeto, em que os agressores, todos irmãos da vítima, conviveram com a ofendida, inexistindo a exigência de coabitação no tempo do crime para a configuração da violência doméstica contra a mulher”, afirmou o ministro Og Fernandes. O entendimento está consolidado na Súmula 600.
7 – Fama e vulnerabilidade
Nos casos de agressão em razão do gênero, o fato de a vítima ser figura pública renomada não afasta a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgar o delito. A decisão foi tomada em 2014, pela Quinta Turma, ao analisar caso envolvendo uma atriz que levou um tapa no rosto do namorado em público.
Para a ministra Laurita Vaz, a condição de destaque da mulher no meio social, seja por situação profissional ou econômica, não afasta a incidência da Maria da Penha, nos casos em que ela for submetida a uma situação de violência decorrente de relação íntima afetiva.
“A situação de vulnerabilidade e fragilidade da mulher, envolvida em relacionamento íntimo de afeto, nas circunstâncias descritas pela lei de regência, se revela ipso facto. Com efeito, a presunção de hipossuficiência da mulher, a implicar a necessidade de o Estado oferecer proteção especial para reequilibrar a desproporcionalidade existente, constitui-se em pressuposto de validade da própria lei”, destacou a ministra.
8 – Execução de alimentos
Para o STJ, cabe ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher julgar a execução de alimentos fixados a título de medida protetiva de urgência em favor de filho do casal em conflito.
A decisão foi tomada em processo envolvendo uma mulher agredida pelo marido. Ela procurou a vara especializada em violência doméstica, pleiteando medidas protetivas – entre elas, alimentos provisionais, que foram deferidos pela juíza.
Segundo o ministro Moura Ribeiro, mesmo que a regra geral atribua a questão dos alimentos às varas de família, cabe ao juizado especializado – quando procurado pela vítima de violência doméstica – apreciar o pedido e, se for o caso, fixar a verba alimentar.
Negar o julgamento pela vara especializada, postergando o recebimento dos alimentos arbitrados como urgentes, seria “afastar o espírito protetivo da lei”, afirmou o ministro.
9 – Ameaça a partir do exterior
Compete à Justiça Federal apreciar o pedido de medida protetiva de urgência decorrente de ameaça feita a partir do estrangeiro, por meio de redes sociais, contra mulher que vive no Brasil.
Assim decidiu o STJ no julgamento do CC 150.712, em 2018, quando a Terceira Seção analisou um suposto caso de crime de ameaça cometido por morador dos Estados Unidos contra a ex-namorada.
Com base em entendimento anterior do STF, o colegiado concluiu que, embora as convenções sobre combate à violência de gênero firmadas pelo Brasil não tratem do crime de ameaça, a Lei Maria da Penha concretizou o dever assumido pelo país nesse campo. O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, destacou que esses acordos internacionais asseguram os direitos das mulheres e estabelecem recomendações para a erradicação de qualquer forma de discriminação e violência contra elas.
10 – Vínculo trabalhista e salário
Em 2019, a Sexta Turma decidiu que o afastamento do serviço por até seis meses, quando isso for necessário para preservar a integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica, deve ser remunerado.
Para o colegiado, esse afastamento – previsto no artigo 9º, parágrafo 2º, inciso II, da Lei Maria da Penha – tem natureza jurídica de interrupção do contrato de trabalho; assim, analogicamente, a mulher tem direito ao auxílio-doença, o que significa que o empregador deve se responsabilizar pelo pagamento dos 15 primeiros dias, ficando o restante do período a cargo do INSS.
Segundo o ministro Rogerio Schietti, a lei assegurou a manutenção do vínculo empregatício, sem nada estabelecer quanto à remuneração. “A vítima de violência doméstica não pode arcar com danos resultantes da imposição de medida protetiva em seu favor”, afirmou o magistrado. Na falta de norma legal específica, ele concluiu que a solução mais razoável é a imposição, ao INSS, dos efeitos remuneratórios do afastamento do trabalho.
O entendimento fixado pela corte se mostra ainda mais relevante quando consideradas as informações do estudo Participação no Mercado de Trabalho e Violência Doméstica contra as Mulheres no Brasil, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segundo o qual a ocorrência de violência doméstica contra mulheres que integram a população economicamente ativa é praticamente o dobro daquela que se verifica entre as que não estão no mercado de trabalho.
11 – Neto da patroa contra empregada
Em fevereiro de 2021, a Sexta Turma confirmou decisão do ministro Sebastião Reis Júnior para restabelecer sentença que condenou um homem por atentado violento ao pudor (atual delito de estupro) praticado contra a empregada doméstica da casa de sua avó.
O tribunal estadual, na análise de revisão criminal, entendeu que a vara especializada em violência doméstica seria incompetente para julgar o caso, e anulou a sentença condenatória. Como o neto não morava na casa da avó, a corte entendeu que não seria aplicável a Lei Maria da Penha, que prevê a competência da vara especializada.
Entretanto, segundo o ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, a sentença registrou que o crime foi cometido em ambiente doméstico, tendo o neto da patroa se aproveitado do convívio com a empregada da casa para praticá-lo – situação que se enquadra na hipótese do artigo 5º, inciso I, da Lei Maria da Penha.
De acordo com o ministro, “o que se exige é um nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade pré-existente, gerada pelo convívio doméstico, sendo desnecessária coabitação ou convívio contínuo entre o agressor e a vítima, podendo o contato ocorrer de forma esporádica”.
Ao restabelecer a sentença, Sebastião Reis Júnior ressaltou parecer do Ministério Público Federal segundo o qual a existência de relação hierárquica e a hipossuficiência da vítima não deixam dúvidas quanto a se tratar de um caso de violência doméstica contra a mulher.
12 – Abrangência ampla
A violência combatida pela Maria da Penha pode ser cometida por qualquer pessoa, inclusive por outra mulher, que tenha uma relação familiar ou afetiva com a vítima.
A Quinta Turma, no julgamento do AgRg no AREsp 1.626.825, por constatar a situação de vulnerabilidade, aplicou a lei a um caso de violência praticada por neto contra a avó.
Para o relator, ministro Felix Fischer, a Maria da Penha objetiva proteger a mulher da violência doméstica e familiar cometida no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto.
Fischer citou precedentes da corte (entre eles, o HC 310.154) que consideraram, com base na doutrina, que estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica as esposas, companheiras ou amantes, bem como a mãe, filhas, netas, sogra, avó ou qualquer outra mulher que mantenha vínculo familiar ou afetivo com o agressor.
13 – Mãe vulnerável, filhas agressoras
Da mesma forma, para o STJ, nos termos do artigo 5º, inciso III, da Lei 11.340/2006, é possível a caracterização de violência doméstica e familiar nas relações entre filhas e mãe, desde que os fatos tenham sido praticados em razão da relação de intimidade e afeto.
O entendimento foi firmado pela Quinta Turma em 2014, ao negar habeas corpus (HC 277.561) para duas mulheres acusadas de constrangerem e ameaçarem a própria mãe. Elas pediam a anulação do processo instaurado no Juizado de Violência Doméstica e a desconstituição das medidas protetivas deferidas com base nos artigos 22 e 23 da Lei 11.340/2006.
Segundo o ministro Jorge Mussi, as instâncias ordinárias apontaram a condição de vulnerabilidade da mãe na relação com as filhas agressoras, o que justifica a incidência da Maria da Penha.
“Infere-se que o objeto de tutela da Lei 11.340/2006 é a mulher em situação de vulnerabilidade não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor”, acrescentou o ministro.
14 – Retratação só diante do juiz
Embora a representação da vítima não seja mais necessária para a abertura da ação penal no caso de lesão corporal em ambiente doméstico, o STJ ainda julga casos relacionados à situação jurídica anterior. Em 2019, a Quinta Turma não conheceu de habeas corpus apresentado pela defesa de um homem denunciado por lesão corporal e estupro – crime para o qual a legislação penal também deixou de exigir a representação, em 2018.
Segundo o relator, Ribeiro Dantas, a Lei Maria da Penha estabeleceu em seu artigo 16 um procedimento próprio para a retratação da vítima nas ações penais públicas condicionadas, exigindo que a renúncia à representação fosse manifestada em audiência perante o juiz, e antes do recebimento da denúncia. Por outro lado, a jurisprudência da corte considera que, depois de oferecida a denúncia, a representação do ofendido será irretratável, conforme o disposto nos artigos 102 do Código Penal e 25 do Código de Processo Penal.
No caso julgado, após o oferecimento da denúncia, a vítima compareceu ao cartório da vara e expressou o desejo de se retratar. Com base nisso, o juiz rejeitou a denúncia. O tribunal estadual mandou que a ação prosseguisse, e houve a impetração do habeas corpus no STJ.
O ministro Ribeiro Dantas explicou que, como a retratação ocorreu somente em cartório, e não em audiência, foi correta a decisão da corte local. Quanto ao estupro, o relator também considerou que a retratação não deveria ter efeito, pois foi manifestada após o oferecimento da denúncia.
15 – Agressões cometidas pelo ex
“A Lei 11.340/2006 buscou proteger não só a vítima que coabita com o agressor, mas também aquela que, no passado, já tenha convivido no mesmo domicílio, contanto que haja nexo entre a agressão e a relação íntima de afeto que já existiu entre os dois”, anotou o ministro Napoleão Nunes Maia Filho no julgamento do CC 102.832, em 2009.
Ao analisar o HC 542.828, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca refutou a tese defensiva de que a ausência de contemporaneidade entre o delito de injúria e o casamento do ofensor com a vítima – rompido 20 anos antes – impediria a incidência da Maria da Penha.
Para a lei – acrescentou –, é irrelevante o tempo de dissolução do vínculo conjugal, se a conduta tida como criminosa está vinculada à relação de afeto que houve entre as partes.
Em outro processo (HC 477.723), a defesa afirmou que a Maria da Penha não poderia ser aplicada, pois o acusado e a vítima estavam separados de fato havia 13 anos. No entanto, segundo a ministra Laurita Vaz, sendo o agressor e a vítima ex-cônjuges, “pode-se concluir, em tese, que há entre eles relação íntima de afeto para fins de aplicação das normas contidas na Lei Maria da Penha”.
Parte dos processos mencionados no texto tramitou em segredo de Justiça, razão pela qual os números não são divulgados.
Fonte: STJ