Para a advocacia brasileira, as ações tomadas pelos magistrados para combater o fenômeno da litigância probatória, embora aplicáveis a casos específicos, já estão afetando negativamente toda a classe, a ponto de surgir o questionamento sobre quem é o verdadeiro predador.
O tema foi levantado na última terça-feira (3/10), em audiência pública promovida pelo Superior Tribunal de Justiça com o objetivo de subsidiar o julgamento de um caso de recursos repetitivos pela 2ª Seção. A relatoria é do ministro Moura Ribeiro, que conduziu os trabalhos.
A tese a ser definida no Tema 1.198 trata da possibilidade de o magistrado obrigar as partes a apresentarem novos documentos capazes de lastrear minimamente os pedidos feitos em demandas repetitivas e massificadas, quando houver indícios de litigância predatória,
O recurso ataca um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) julgado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJ-MS), que fixou a tese segundo a qual o juiz pode exigir a apresentação de novos documentos que entender pertinentes.
Como nem toda litigância de massa é predatória, representantes de entidades da advocacia e seccionais da OAB relataram na audiência que juízes estão determinando a apresentação de procuração atualizada, às vezes com assinatura manuscrita e firma autenticada, inclusive nas petições iniciais.
Há relatos de exigência de que as partes se dirijam ao fórum para confirmar se conhecem o advogado e se sabem detalhes da causa. E ainda de extinção de ações pela falta de comprovante de residência, documento que pode ser de difícil acesso para pessoas vulneráveis.
Advogados que atuam em demandas de massa ou com temas de nicho têm sido alvos de expedição de ofícios ao Ministério Público, às polícias e à OAB por assinarem dezenas de petições semelhantes. Por esse motivo, há indeferimento de pedidos de gratuidade de Justiça.
Profusão de multas
Um exemplo citado na audiência surgiu no Tocantins, onde o titular do Juizado Especial Cível de Augustinópolis (TO) extinguiu cerca de 200 processos de um advogado por considerar irregular a procuração, e ainda aplicou multa por litigância de má-fé de 5% sobre o valor de cada ação.
O mesmo magistrado aplicou essa solução a outras ações de outros advogados. Segundo a OAB-TO, mais de 700 processos foram sumariamente extintos.
Coube, então, à seccional da Ordem ajuizar mandado de segurança na condição de substituta processual desses advogados, para pedir a anulação das sentenças, já que eles não puderam se defender previamente e, sem procuração considerada válida, não poderiam recorrer das multas.
A entidade tem obtido liminares para suspender as decisões, o que permite o recebimento de recursos. E, neles, a determinação de retorno dos autos para permitir a regularização processual e o regular prosseguimento das ações.
Para a advogada Aurideia Loiola Dallacqua, da OAB-TO, isso torna o exercício da advocacia um constrangimento. “A análise da conduta ética do advogado e de infração disciplinar é de competência da OAB, por seu tribunal de ética, em conformidade com sua missão constitucional”, lembrou ela.
Os causídicos que participaram da audiência pública mostraram preocupação com tantos casos de condenações ao pagamento de multas sendo impostas a advogados, como se eles fossem partes nas ações.
Outros participantes citaram, em abstrato, decisões que atribuíram o ônus da sucumbência aos advogados e até um caso de prisão, que teria sido decretada por um juiz após cancelar a inscrição do patrono na OAB. O motivo: advocacia predatória.
Caça e caçador
Para Walter José Faiad de Moura, que representou o Conselho Federal da OAB na audiência, toda a discussão sobre a possibilidade de o juiz tomar medidas quando identificar indícios de litigância predatória foge do problema real: o desrespeito generalizado a direitos.
“Não há como inverter a figura do predador para que ele se esconda como um lobo na pele do cordeiro. Aqui, existe uma cortina de fumaça em que grandes demandados vão usar os juízes para não contestar ações massificadas. E ninguém fala em resolver o problema de fundo.”
“Segue o jogo da microlesão, da estigmatização do advogado, que agora virou bandido. Quem ajuíza cem, 200 ações agora é bandido. E o Conselho Federal da OAB tem um sistema eficaz de julgar e suspender os advogados que cometem irregularidades”, prosseguiu ele.
Paulo Henrique dos Santos Luccon, que falou pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), e inclusive defendeu a possibilidade de o juiz exigir documentos, também destacou a necessidade de diferenciar corretamente o que — ou quem — é o responsável por tantas ações.
“A litigância predatória atinge tanto demandantes quanto demandados. E os demandados os são porque não cumprem suas obrigações e acabam gerando inúmeras demandas ao Judiciário. É preciso pontuar, do ponto de vista teórico, que litigância predatória não é um fenômeno apenas do demandante.”
Esse cenário só é possível, na análise do professor e pesquisador Alexandre Rodrigues de Souza, porque o sistema judicial brasileiro tem brechas que permitem a litigância predatória. Ele ressaltou uma a uma durante a audiência no STJ:
a)Sistema tolerante a multiplicação de processos sobre o mesmo conflito;
b)Filtros normativos ao abuso são ineficazes e pouco organizados no âmbito jurisprudencial;
c)Gratuidade da Justiça não padronizada, gerando distorções sistemáticas e incentivando a litigância frívola;
d)O papel da advocacia como sujeito necessário para acionar a Justiça.
Fonte Conjur